Informativo STJ 870 Comentado

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1.          Ato infracional — interrogatório ao final (Tema 1269)

Destaque

O adolescente deve ser interrogado ao final da instrução, aplicando-se subsidiariamente o art. 400 do CPP ao procedimento do ECA; a inobservância gera nulidade condicionada à demonstração de prejuízo e deve ser arguida na primeira oportunidade, com eficácia modulada a partir de 3/3/2016.

REsp 2.088.626-RS e REsp 2.100.005-RS (Tema 1269), Rel. Min. Rogerio Schietti Cruz, Terceira Seção, unanimidade, julgados em 8/10/2025.

Conteúdo-Base

???? CPP, art. 400 (interrogatório como último ato da instrução).

???? ECA, arts. 3º, 100 par. ún. I e 184 (proteção integral; audiência de apresentação; vedação a tratamento mais gravoso).

???? CF, art. 5º, LV (contraditório e ampla defesa).

???? HC 127.900/AM – STF (3/3/2016) (aplicabilidade do art. 400 do CPP aos ritos especiais).

???? O interrogatório é meio de autodefesa e só cumpre sua função se realizado após a produção da prova.

???? O ECA é omisso quanto à ordem da instrução — aplica-se o art. 400 do CPP por subsidiariedade.

???? A nulidade é relativa e exige demonstração tempestiva do prejuízo (proibição de nulidade de algibeira).

???? A modulação evita retroatividade excessiva e respeita a segurança jurídica.

Discussão e Tese

???? A controvérsia residia em saber se o adolescente poderia ser interrogado apenas na audiência de apresentação — sem acesso às provas — ou se deveria ser ouvido ao final, como ocorre no procedimento penal comum. A Terceira Seção reconheceu que a evolução do sistema constitucional de garantias, somada ao princípio da proteção integral, impede que o adolescente receba tratamento processual inferior ao do adulto, principalmente quanto ao direito de se manifestar após conhecer o conjunto probatório.

⚖️ O Tribunal também discutiu os efeitos práticos dessa mudança, concluindo que o novo rito deve observar a modulação estabelecida pelo STF: aplica-se somente a processos cuja instrução se encerrou após 3/3/2016. A nulidade não é automática — deve ser alegada na primeira oportunidade e demonstrado como o interrogatório antecipado comprometeu a autodefesa. A decisão reforça a lógica do devido processo legal e da vedação ao uso estratégico e tardio de nulidades.

Como será Cobrado em Prova

???? O adolescente pode ser interrogado antes da instrução, bastando a audiência de apresentação prevista no art. 184 do ECA.

❌ Errado. A audiência de apresentação não substitui o interrogatório final, pois este é meio de autodefesa assegurado pelo art. 400 do CPP aplicado subsidiariamente.

???? A nulidade decorrente da ausência de interrogatório ao final é absoluta, persumindo-se o prejuízo à defesa.

❌ Errado. Esse aspecto — a natureza relativa da nulidade — é ponto secundário central no Tema 1269: trata-se de relativa e portanto exige alegação imediata pela defesa, sob pena de preclusão.

Versão Esquematizada

???? Ato infracional – interrogatório final
???? Aplicação subsidiária do CPP 400 ???? Interrogatório = meio de autodefesa ???? Nulidade relativa → exige prejuízo + arguição imediata ???? Modulação: válido para instruções encerradas após 3/3/2016

Inteiro Teor

     A controvérsia consiste em saber se o art. 400 do Código de Processo Penal é aplicável subsidiariamente ao rito especial previsto no Estatuto da Criança e do Adolescente.

     O Superior Tribunal de Justiça, no passado, não reconhecia a obrigatoriedade de o adolescente ser ouvido sobre as suas responsabilidades como ato final da instrução. Prevalecia a compreensão de que, nos termos do art. 184 do ECA, uma vez oferecida a representação, a autoridade judiciária deveria designar apenas a audiência de apresentação do processado para decidir, desde logo, sobre a decretação ou a manutenção da internação e a possibilidade de remissão.

     Entretanto, houve evolução na jurisprudência para evitar que os adolescentes enfrentem tratamento mais gravoso do que o estabelecido aos adultos e, conforme o decidido pela Terceira Seção, a partir do julgamento do HC 769.197/RJ, esta Corte passou a reconhecer a necessidade de aplicar a norma inscrita no art. 400 do Código de Processo Penal ao rito especial previsto no Estatuto da Criança e do Adolescente. Na oportunidade, o colegiado definiu a modulação dos efeitos da decisão.

     Com efeito, o interrogatório há de ser visto como meio de defesa e precisa ser realizado como último ato instrutório, a fim de que o representado tenha condições efetivas de influenciar a convicção judicial. Essa ordem de produção da prova preserva os direitos e as garantias dos adolescentes, os quais não podem ser tratados como meros objetos da atividade sancionadora estatal (art. 100, parágrafo único, I, do ECA).

     Ademais, o art. 3° da Lei n. 8.069/1990 assegura aos indivíduos em desenvolvimento “todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sem prejuízo da proteção integral de que trata essa lei”. É pertinente e recomendável, portanto, a evolução da jurisprudência para ampliar a proteção integral dos sujeitos de direito, pois o art. 110 do mesmo estatuto dispõe que: “Nenhum adolescente será privado de sua liberdade sem o devido processo legal”.

     Ressalte-se que a Constituição Federal de 1988 garante aos acusados em geral, no art. 5°, LV, da CF, o contraditório e a ampla defesa, com os meios e os recursos a ela inerentes, direito que engloba a perspectiva de o representado por ato infracional, pessoalmente e perante a autoridade judicial competente, confrontar as imputações e as provas produzidas em seu desfavor. Como não é possível se defender de algo que não se sabe, o interrogatório deve ser realizado ao final da instrução, nos moldes do art. 400 do CPP.

     Essa é a interpretação que melhor se conforma com um devido processo legal justo. Além disso, impõe-se prestigiar a modulação da tese jurídica já fixada pela Terceira Seção desta Corte. Assim, os efeitos retrospectivos deste julgado devem incidir a partir de 3/3/2016, data em que o Tribunal Pleno do Supremo Tribunal Federal, no julgamento do HC 127.900/AM, firmou o entendimento de que o art. 400 do CPP era aplicável também aos ritos previstos em leis especiais.

Assim, doravante é preciso observar as seguintes orientações: a) oferecida a representação, será designada audiência de apresentação, para a decisão sobre a internação provisória e a possibilidade de remissão, a qual poderá ser concedida a qualquer tempo antes da sentença; b) nessa oportunidade inicial, é vedada a atividade probatória, e eventual colheita de confissão não poderá, por si só, fundamentar a procedência da ação; c) diante da lacuna na Lei n. 8.069/1990, aplica-se o art. 400 do CPP ao procedimento especial de apuração do ato infracional, para garantir ao adolescente o interrogatório ao final da instrução, perante o Juiz competente, depois de ter ciência do acervo probatório produzido em seu desfavor; d) o novo entendimento é aplicável aos processos com instrução encerrada após 3/3/2016 e e) para ser reconhecida, a nulidade deve ser alegada no momento oportuno, sob pena de preclusão.

     O profissional que assiste o adolescente é quem tem melhores condições para identificar o dano causado pela falta de sua oitiva ao final da instrução. Em regra, se o defensor não identificou, de pronto, o prejuízo à autodefesa e a possibilidade de o representado, com suas palavras, interferir no resultado do processo, a nulidade processual não pode ser presumida por esta Corte. A alegação extemporânea de nulidade, apenas como mera estratégia de invalidação da sentença em fase mais oportuna, revela comportamento contraditório, incompatível com a boa-fé processual.

     Do exposto, para fins do julgamento sob o rito dos recursos repetitivos, fixa-se a seguinte tese:

     1. No rito especial que visa apurar a prática de ato infracional, além da audiência de apresentação do adolescente prevista no art. 184 do ECA, aplica-se subsidiariamente o art. 400 do CPP, de modo que, em acréscimo, é preciso garantir ao adolescente o interrogatório ao final da instrução.

     2. A inobservância desse procedimento implicará nulidade se o prejuízo à autodefesa for informado pela parte na primeira oportunidade que tiver para se manifestar nos autos, sob pena de preclusão.

     3. O entendimento é aplicável aos feitos com instrução encerrada após 3/3/2016.

2.        Competência do STJ — desembargador e violência doméstica

Destaque

O STJ é competente para julgar desembargador em crime comum, para garantir imparcialidade; em violência doméstica, a palavra da vítima, corroborada por prova pericial e testemunhal, possui elevado valor probatório, e o dano moral é in re ipsa.

APn 1.079-DF, Rel. Min. Antonio Carlos Ferreira, Corte Especial, unanimidade, julgado em 15/10/2025, DJEN 23/10/2025.

Conteúdo-Base

???? CF, art. 105 I a (competência do STJ para julgar desembargadores nos crimes comuns).

???? CP, art. 129 §9º (lesão corporal em violência doméstica).

???? Res. CNJ 492/2023 (Protocolo de Julgamento com Perspectiva de Gênero).

???? Fonavid 74 (perícia psicológica para lesão à saúde mental).

???? Prova pericial + testemunhal + palavra da vítima, quando coerentes, formam quadro robusto.

???? Estereótipos de gênero não podem fundamentar teses defensivas.

???? Dano moral decorrente de violência doméstica é in re ipsa — dispensa prova específica.

Discussão e Tese

???? O Tribunal examinou três aspectos: a competência para julgar desembargador em crime comum, a suficiência do conjunto probatório e a existência de dano moral. Rejeitou a tese de que a ausência de relação com o cargo afastaria a competência do STJ, afirmando que julgamentos por juízes hierarquicamente inferiores comprometeriam a aparência de imparcialidade.

⚖️ No mérito, analisou o conjunto de provas — depoimentos, laudos traumatológicos e psicossociais, coerência narrativa da vítima — concluindo que todas as evidências externavam agressão e posterior abalo emocional. Rechaçou a alegação de autolesão e interesse patrimonial por se basear em estereótipos de gênero já repudiados pela jurisprudência. A indenização foi reconhecida pelo critério do damnum in re ipsa, diante da natureza do crime de violência doméstica.

Como será Cobrado em Prova

???? A competência para julgar crimes comuns praticados por desembargadores é do juízo de 1º grau, se o crime não tiver relação com as funções do cargo.

❌ Errado. A competência é do STJ (CF 105 I a), independentemente de vínculo funcional com o fato.

???? Em violência doméstica, o dano moral decorre automaticamente do próprio ato agressivo, dispensando comprovação específica.

✅ Correto. Vide APn 1.079-DF.

Versão Esquematizada

???? Desembargador – competência penal
???? CF 105 I a → competência originária do STJ ???? Prova robusta: vítima + perícia ???? Estereótipos de gênero → vedados ???? Dano moral in re ipsa

Inteiro Teor

     Cinge-se a controvérsia em saber se o Superior Tribunal de Justiça é competente para julgar Desembargador por crime não relacionado com o exercício do cargo; se o réu praticou o delito de lesão corporal contra cônjuge, prevalecendo-se das relações domésticas, conforme descrito na denúncia, e se haveria elementos suficientes para sua condenação, bem como se é cabível indenização por dano moral.

     No que tange à competência, o STJ é competente para julgar os delitos praticados por desembargadores, ainda que os fatos não tenham relação com o exercício do cargo, considerando que o processamento e o julgamento do feito por magistrado de primeiro grau de jurisdição vinculado ao mesmo Tribunal poderiam afetar a independência e a imparcialidade que orientam a atividade jurisdicional (APn n. 943/DF, relator Ministro Jorge Mussi, Corte Especial, julgado em 20/4/2022, DJe de 12/5/2022).

     Ademais, o presente julgamento seguiu as diretrizes constantes do Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero (Resolução CNJ n. 492/2023) na análise dos crimes praticados no contexto de violência doméstica e familiar.

     Em relação à lesão corporal, foi imputado ao desembargador de justiça o delito previsto no art. 129, § 9º, do Código Penal, com a redação dada pela Lei n. 11.340/2006, por lesão corporal contra cônjuge em contexto de violência doméstica, com pedido de indenização por danos morais e materiais à vítima.

     A lesão física foi demonstrada por meio de boletim de ocorrência, perícia traumatológica, prova testemunhal produzida na fase da investigação (ratificada na fase da persecução penal) e declarações da vítima.

     A lesão à saúde mental da vítima ficou comprovada nos Laudos Psicossociais elaborados por Equipe Multidisciplinar do Tribunal de Justiça, nos termos da orientação preceituada no Enunciado n. 74 do FONAVID (A configuração da materialidade do crime de lesão à saúde mental previsto no art. 129 do Código Penal dependerá de perícia psicológica ou psiquiátrica que deverá ser realizada com perspectiva de gênero).

     A autoria também foi demonstrada de modo suficiente, conforme depoimentos de testemunhas e vítima. A palavra da vítima, em harmonia com os demais elementos presentes nos autos, possui relevante valor probatório, especialmente em crimes que envolvem violência doméstica e familiar contra a mulher.

     Apesar das agressões à vítima terem se dado em um contexto de briga do casal, não houve demonstração de que o réu agiu em legítima defesa ou de que as agressões físicas foram recíprocas, tampouco de que o réu fez uso moderado de meios para afastar uma suposta agressão injusta proveniente da vítima. Também não merece prosperar a tese defensiva de que a vítima teria interesse patrimonial na relação e que, por isso, teria ferido a si mesma, registrando o boletim de ocorrência posteriormente sem justificar, em suas declarações, o hiato havido.

     Tal tese, além de colocar sob suspeição o trabalho técnico do Instituto de Medicina Legal estadual – como se a médica legista que atendeu a vítima não tivesse a qualificação necessária para discernir uma autolesão de uma lesão provocada por terceiro -, aparentemente busca imputar à vítima a responsabilidade pela agressão sofrida, reforçando os ultrapassados estereótipos de gênero lamentavelmente presentes ainda hoje em nossa sociedade e no próprio sistema de justiça.

     Ressalta-se ainda que o fato de a vítima – após o registro do boletim de ocorrência e o deferimento das medidas protetivas – ter realizado ligações para o réu, enviando mensagens pedindo que o relacionamento fosse reatado, não basta para obliterar as provas constantes dos autos, sendo também um comportamento usual nos casos de violência doméstica e familiar, especialmente quando há dependência econômico-financeira. Nesse contexto, o receio de não conseguir sustentar a si ou a sua família, assinalado pela vítima, que a motivou a procurar o réu mesmo na vigência das medidas protetivas, não constitui episódio isolado no denominado ciclo de violência.

     Quanto ao pedido de indenização, o dano moral suportado pela vítima é inconteste, derivado do próprio ato ofensivo, que, no caso presente, é tipificado como crime previsto no art. 129, § 9º, do Código Penal, sua natureza é de dano presumido (damnum in re ipsa), de tal modo que, provado o fato gerador da dor, do abalo emocional, do sofrimento, está demonstrado o dano moral, numa presunção natural, que decorre das regras de experiência comum.

     Sob esse enfoque e considerando a demonstração de nexo entre o delito apurado nos presentes autos e os danos psicológicos e emocionais atestados nos laudos psicossociais elaborados pela equipe multidisciplinar do Tribunal estadual, com a presença de efeitos ainda na vida atual da vítima, e considerando a culpabilidade elevada do réu, assim como sua renda líquida declarada, deve ser fixado valor indenizatório, a título de danos morais, corrigidos monetariamente a partir do arbitramento e com juros de mora contados da data do evento.

3.         Improbidade — cassação da aposentadoria

Destaque

É possível converter a pena de perda da função pública em cassação de aposentadoria na fase de cumprimento de sentença em ação de improbidade administrativa, conforme atual jurisprudência do STF.

Processo em segredo de justiça, Rel. Min. Paulo Sérgio Domingues, Primeira Seção, unanimidade, julgado em 2/10/2025, DJEN 7/10/2025.

Conteúdo-Base

???? LIA, art. 9º (enriquecimento ilícito).

???? LIA, art. 12 §1º (restrição da perda da função ao cargo da época — regra atual).

???? CF, art. 40 (regime previdenciário e possibilidade de cassação diante de ilícito funcional grave).

???? RE 1.456.118/SP – STF (cassação possível mesmo após aposentadoria).

???? Rcl 67.300/DF – STF (STF: cassação permanece possível; EC 20/1998 e 41/2003 não revogaram).

???? A cassação decorre do efeito lógico da perda de função quando o ilícito só é descoberto após a aposentadoria.

???? A Primeira Seção do STJ abandonou entendimento anterior (EREsp 1.496.347/ES) diante da nova orientação do STF.

???? A superveniência da Lei 14.230/2021 não altera o resultado quando o ato praticado é enquadrável em enriquecimento ilícito doloso.  

Discussão e Tese

???? A controvérsia girou em torno da tensão entre dois princípios: legalidade estrita das sanções administrativas e necessidade de preservar a eficácia das punições por improbidade. O STJ reconheceu que, embora antes entendesse ser impossível cassar aposentadoria, essa visão se tornou incompatível com a jurisprudência consolidada do STF, que reafirmou a continuidade lógica entre perda da função e cassação quando o ilícito só vem à tona depois da inativação.

⚖️ O Tribunal também analisou o risco de impunidade: se o servidor pudesse evitar a pena bastando aposentar-se antes da conclusão do processo, o sistema sancionatório seria esvaziado. Por isso, entendeu que a cassação não viola o art. 40 da CF e decorre do próprio ato ilícito que, se conhecido à época da prática, teria ensejado demissão sem direito à aposentadoria.

Como será Cobrado em Prova

???? A cassação da aposentadoria é proibida em ações de improbidade, pois ultrapassa a pena prevista originalmente.

❌ Errado. A jurisprudência do STF reconhece que a cassação é efeito lógico da perda do cargo quando o ilícito ocorreu antes da aposentadoria.

???? A superveniência da Lei 14.230/2021 impede a cassação quando o ato configurou enriquecimento ilícito doloso.

❌ Errado. O STJ destacou que a reforma da LIA não afeta esse tipo de condenação.

Versão Esquematizada

???? Improbidade – cassação da aposentadoria
???? STF: perda da função → cassação possível ???? Evita impunidade pelo tempo/aposentação ???? LIA 9º (enriquecimento ilícito) ???? Lei 14.230/2021 não altera o resultado

Inteiro Teor

     No recurso, controverte-se acerca da cassação de aposentadoria de servidor condenado por improbidade administrativa.

     A parte recorrente alega que a questão foi pacificada quando do julgamento dos EREsp 1.496.347/ES. Argumenta, ainda, que a condenação original baseou-se no art. 9º da Lei n. 8.429/1992, que foi reformado pela Lei n. 14.230/2021, não havendo comprovação de dolo específico nos atos por ela praticados.

     No caso, é preciso enfatizar que o acórdão recorrido, ao concluir que “a cassação da aposentadoria é plenamente cabível nas ações em que se imputa ao réu a prática de atos de improbidade administrativa, como consectário lógico da pena de perda da função pública”, espelha a atual jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (STF), não mais se podendo aplicar o quanto afirmado pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ) nos EREsp 1.496.347/ES.

     Necessário rememorar que o fundamento central que levou a Primeira Seção do STJ, naqueles embargos de divergência, a reconhecer a impossibilidade de cassação de aposentadoria em ação por improbidade administrativa fora a legalidade estrita.

     O STF, todavia, tem reformado decisões a defender esse entendimento, seja em recurso extraordinário, seja em reclamação.

     Quando do julgamento do RE 1.456.118/SP, a Suprema Corte afirmou a possibilidade de conversão de pena de perda de cargo público em cassação de aposentadoria na fase de cumprimento de sentença de ação por improbidade administrativa.O recurso extraordinário em questão foi interposto do acórdão do STJ prolatado pela Segunda Turma no AgInt no AREsp 1.773.833/SP, em 20/6/2023.

     O Ministro Gilmar Mendes, de outro lado, ao relatar a Reclamação 67.300/DF, ação essa proposta no curso de execução de sentença prolatada em ação de improbidade administrativa, afirmou ser este o entendimento do Plenário do Supremo Tribunal Federal: “[…] mesmo considerando a promulgação das Emendas Constitucionais 3/1993, 20/1998 e 41/2003, a previsão de aplicação da penalidade de cassação de aposentadoria de servidor público não foi revogada pelo texto constitucional, principalmente no que diz respeito ao regime de previdência instituído pelo art. 40 da Constituição Federal.” Em arremate, Sua Excelência enfatizou o seguinte: “[…] ante a falta grave praticada pelo servidor ainda em atividade, constatada apenas após a sua aposentadoria, é cabível a penalidade de cassação da aposentadoria. Isso porque se o ato ilícito fosse conhecido à época de sua prática e fosse aplicada a pena de demissão, o servidor perderia o cargo e nem sequer teria direito à aposentadoria”.

     Mais recentemente, em decisão monocrática prolatada em 2/8/2024, o Ministro Alexandre de Moraes deu provimento a recurso extraordinário com agravo para reformar acórdão, proferido na origem, no qual o relator seguia exatamente a orientação do Superior Tribunal de Justiça firmada no julgamento dos EREsp 1.496.347/ES.

     Finalmente, registre-se que a condenação na origem deu-se com base no art. 9º da Lei de Improbidade Administrativa (LIA), tendo sido reconhecida a presença de dolo e de enriquecimento ilícito decorrente do furto de armas de fogo praticado por agente da Polícia Civil do Distrito Federal, razão por que a superveniência da Lei 14.230/2021 não altera a tipicidade da conduta. Aliás, nem sequer o atual § 1º do art. 12 da LIA tem alguma influência na decisão recorrida, pois a norma inovou o ordenamento apenas no tocante ao vínculo a ser especificamente afetado pela pena de perda da função, passando a estabelecer que ela se restringe ao cargo “de mesma qualidade e natureza que o agente público ou político detinha com o poder público na época do cometimento da infração”.

     Destarte, em consonância com a atual jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, é possível a conversão da pena de perda de cargo público em cassação de aposentadoria na fase de cumprimento de sentença de ação por improbidade administrativa.

4.        Competência — ações indenizatórias e Infância e Juventude

Destaque

A competência da Vara da Infância e da Juventude não se aplica a ações meramente patrimoniais ou obrigacionais; em indenizações contra municípios, prevalece a regra geral de competência territorial, salvo demonstração de prejuízo ao contraditório.

Processo em segredo de justiça, Rel. Min. Marco Aurélio Bellizze, Primeira Seção, unanimidade, 2/10/2025.  

Conteúdo-Base

???? ECA, art. 147 (juízo imediato — domicílio do responsável ou local onde se encontre o menor).

???? ECA, art. 148 (competência absoluta somente para matérias ligadas à proteção integral e direitos fundamentais).

???? CPC, art. 43 (perpetuatio jurisdictionis — competência territorial permanece após o ajuizamento).

???? A competência absoluta da Infância é excepcional e restrita; depende de vínculo direto com proteção integral do menor.

???? Ações patrimoniais possuem natureza civil comum, mesmo quando o fato gerador envolva violação a direito fundamental.

???? O pedido define a competência: se visa apenas indenização, sem medidas protetivas, a competência é da Justiça Comum.

???? A proximidade territorial com os fatos e testemunhas reforça o juízo natural originalmente escolhido.

Discussão e Tese

???? O STJ destacou que a controvérsia não diz respeito à gravidade do fato subjacente — no caso, estupro de vulnerável em escola municipal — mas sim à natureza do pedido, limitado à reparação civil. Embora a causa de pedir envolvesse violação de direito fundamental, o pedido não buscava tutela protetiva, mas apenas indenização, o que impede deslocamento automático para a Infância e Juventude. A Corte reforçou que competência excepcional deve ser interpretada estritamente para evitar expansão indevida do microssistema protetivo.

⚖️ A Seção também analisou a pertinência do juízo escolhido: a ação foi proposta no foro da residência da menor e do local do fato, atendendo à lógica da maior proximidade do juiz com as provas. Com os atuais meios tecnológicos, não havia qualquer prejuízo à defesa ou à instrução. Assim, concluiu-se que a regra geral de competência territorial deve prevalecer, salvo prova concreta de prejuízo, inexistente no caso.

Como será Cobrado em Prova

???? A Justiça da Infância e da Juventude tem competência restrita para julgar ação que envolva proteção à criança ou ao adolescente, excluindo indenizações.

✅ Correto. Competência absoluta exige conexão direta com proteção integral; ações patrimoniais seguem a competência civil comum. O princípio do juízo imediato não afasta a regra da competência territorial quando o pedido é apenas indenizatório, sobretudo se o foro escolhido coincide com o local dos fatos e da residência da vítima.

Versão Esquematizada

???? Competência — Infância vs. Justiça Comum
???? ECA 147–148 → competência absoluta restrita ???? Pedido meramente patrimonial → Justiça Comum ???? Foro da residência/local dos fatos → adequado ???? Juízo imediato não se aplica sem pretensão protetiva

Inteiro Teor

     A questão em discussão consiste em saber se, na ação indenizatória promovida contra município, deve prevalecer o princípio do Juiz imediato, previsto no art. 147 do Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA, ou a regra geral da perpetuação da jurisdição, disposta no art. 43 do Código de Processo Civil – CPC/2015.

     Quanto ao assunto, consigna-se que o art. 147 do ECA estabeleceu o princípio do juízo imediato ao dizer que a competência será determinada pelo domicílio dos pais ou responsável, ou pelo lugar onde se encontre a criança ou adolescente, à falta daqueles.

     Essa norma especial de competência é complementada pelo art. 148, também do ECA, ao enumerar as hipóteses em que a Justiça da Infância e da Juventude será competente.

     Contudo, depreende-se dos citados dispositivos do ECA que a competência absoluta do Juízo da Infância e da Juventude deverá ser observada naquelas hipóteses específicas, sobretudo naquelas situações de “menor em situação irregular”, não podendo ser expandida aleatoriamente para outras demandas que não estejam intimamente ligadas à proteção de direitos fundamentais de crianças e adolescentes.

     Por conseguinte, a alegação de competência absoluta deverá ser rechaçada quando a ação em que se discute o direito do menor possua cunho estritamente patrimonial ou obrigacional e se busque unicamente interesses particulares.

     Estabelecidas essas premissas, vê-se que o caso não justifica a prevalência da competência absoluta prevista no ECA, haja vista que, não obstante a causa de pedir da ação subjacente envolva a absurda e repulsiva violação à dignidade sexual de criança em escola municipal, o que de fato configura uma violação aos seus direitos fundamentais, o pedido é estritamente patrimonial, buscando a condenação do ente municipal ao pagamento de indenização por danos morais decorrentes dessa violação, o que não atrai a competência da Juízo da Infância e da Juventude.

     Além disso, importante destacar que a ação foi proposta no juízo suscitado, que era a comarca de residência da menor e onde ocorreram os atos ilícitos, de maneira que a manutenção dos autos nele se mostra benéfica à própria criança, dado que a proximidade do juiz aos fatos favorece a entrega da prestação jurisdicional mais assertiva, tornando a produção das provas mais ágil e menos custosa.

     Ademais, os meios tecnológicos atuais permitem a prática de atos processuais a distância, não havendo prejuízo à defesa dos interesses da menor. Dessa forma, a regra geral de competência territorial deve prevalecer em ações indenizatórias contra municípios, salvo prova de efetivo prejuízo ao contraditório, o que não aconteceu no caso.

5.        Carta precatória e videoconferência — Res. CNJ 105

Destaque

Quando houver sala passiva instalada, a carta precatória para oitiva de testemunhas deve limitar-se à disponibilização da estrutura, cabendo ao juiz deprecante conduzir diretamente o ato por videoconferência.

EDcl no AgInt no CC 196.645-SP, Rel. Min. Afrânio Vilela, Primeira Seção, unanimidade, 14/10/2025.

Conteúdo-Base

???? CPC, art. 67 (cooperação entre órgãos jurisdicionais).

???? CPC, art. 69 §2º II (atos cooperativos — obtenção e apresentação de provas).

???? CPC, art. 267 (realização de atos conforme estrutura do juízo deprecado).

???? Res. CNJ 105/2010, art. 3º caput e §2º (preferência pela videoconferência e direção do ato pelo juiz deprecante).

???? A videoconferência é instrumento de eficiência, celeridade e racionalização da instrução probatória.

???? A existência de sala passiva altera a lógica tradicional da deprecação: o juiz deprecado não conduz a oitiva; apenas disponibiliza a infraestrutura.

???? A direção do ato permanece com o juiz deprecante para assegurar identidade física e integridade da instrução.

Discussão e Tese

???? O STJ verificou que a prática reiterada de delegar integralmente a condução da oitiva ao juízo deprecado contrariava a Resolução 105/2010, cujo objetivo era padronizar e agilizar depoimentos à distância. A existência de sala passiva — ambiente equipado para videoconferência — desloca para o juiz deprecante a direção dos atos, preservando sua vinculação direta à prova colhida, elemento fundamental para o convencimento judicial.

⚖️ A Corte ressaltou que cooperação entre juízos não significa transferência integral de competência instrutória. Quando o sistema permite videoconferência, o juiz deprecado deve apenas facilitar o ato (intimações, logística, disponibilização da sala), enquanto o juiz deprecante mantém a condução para garantir unidade, coerência e eficiência instrutória — evitando duplicação de atos e potencial nulidade por quebra da identidade física.

Como será Cobrado em Prova

???? Na existência de sala passiva, o juízo depreca o juízo deprecante o juízo deprecante deve conduzir a oitiva de testemunhas por videoconferência.

❌ Errado. O juízo deprecante apenas disponibiliza a infraestrutura; a direção do ato é do juízo deprecante.

???? A videoconferência, no regime de cooperação do CPC/2015, busca assegurar identidade física do juiz e maximizar a eficiência instrutória, evitando múltiplas oitivas.

✅ Correto. Este é o fundamento secundário e essencial da decisão.

Versão Esquematizada

???? Carta precatória – videoconferência
???? Res. 105/2010 → videoconferência preferencial ???? Sala passiva → juízo deprecado só disponibiliza ???? Juiz deprecante dirige o ato ???? Cooperação → eficiência + identidade física

Inteiro Teor

     Este conflito de competência busca discutir a viabilidade da carta precatória expedida pelo juiz federal ao juiz de direito, destinada à oitiva de testemunhas, em ação previdenciária na qual a segurada postula a concessão da aposentadoria rural por idade em face do Instituto Nacional do Seguro Social.

     Em casos análogos ao presente, o STJ vinha adotando o entendimento de que “a prática de atos processuais por videoconferência é uma faculdade do juízo deprecante, não competindo ao juízo deprecado a determinação de forma diversa da realização de audiência” (CC 165.381/MG, relator Ministro Francisco Falcão, Primeira Seção, DJe de 14/6/2019).

     Ocorre que, a Primeira Seção considerou que, neste caso específico, estaria havendo uma subversão da aplicação da norma prevista no art. 267 do CPC, de modo a autorizar a realização de distinguishing em relação à jurisprudência consolidada.

     Com efeito, o princípio da cooperação nacional previsto no art. 67 do CPC impõe aos órgãos do Poder Judiciário o dever de cooperar entre si para a prestação de uma tutela jurisdicional mais célere e efetiva, viabilizando a obtenção de resultados máximos, com menor dispêndio de tempo e custos. Nos termos do inc. II do § 2º do art. 69 do CPC, os atos dos juízes cooperantes poderão consistir no estabelecimento de procedimento para a obtenção e apresentação de provas e a coleta de depoimentos.

     Na mesma linha, a Resolução 105/2010 do Conselho Nacional de Justiça – alterada pela Resolução 326/2020 – dispõe em seu art. 3º que “quando a testemunha arrolada não residir na sede do juízo em que tramita o processo, deve-se dar preferência, em decorrência do princípio da identidade física do juiz, à expedição da carta precatória para a inquirição pelo sistema de videoconferência”. Ainda, no § 2º do referido dispositivo, consta que “a direção da inquirição de testemunha realizada por sistema de videoconferência será do juiz deprecante”.

     Assim sendo, o STJ passou a adotar o entendimento de que, “nos locais em que existente sala passiva, a deprecação há de limitar-se à disponibilização desta em data e hora previamente agendada, intimação de quem necessário e demais atos preparatórios de modo que o magistrado efetivamente competente cumpra, sequencialmente, seu dever de oitiva das partes e testemunhas”.

6.        Competência — Justiça Comum x Justiça do Trabalho (delivery)

Destaque

Compete à Justiça Comum Estadual julgar ação de reativação de conta em plataforma de delivery, quando não há pedido de reconhecimento de vínculo de emprego ou verbas trabalhistas.

CC 214.451-SP, Rel. Min. Daniela Teixeira, Segunda Seção, unanimidade, 16/9/2025.

Conteúdo-Base

???? CF, art. 114 I (competência da Justiça do Trabalho para relação de emprego ou trabalho).

???? CPC, art. 64 §1º (competência determinada pela causa de pedir e pedidos).

???? A Justiça do Trabalho só é competente quando o pedido busca reconhecimento de vínculo, verbas trabalhistas ou controvérsia sobre relação de trabalho.

???? A ação de reativação de conta decorre de contrato civil/empresarial entre plataforma e entregador.

???? A indenização pretendida decorre de responsabilidade civil contratual, e não de relação laboral.

Discussão e Tese

???? A questão central era determinar se o bloqueio da conta do entregador seria reflexo de relação de trabalho e, portanto, atrairia competência trabalhista. O STJ destacou que o critério decisivo não é a natureza sociológica da atividade, mas sim o conteúdo jurídico da demanda: se os pedidos são exclusivamente obrigacionais, sem pretensão de reconhecimento de vínculo, o litígio é civil.

⚖️ O Tribunal enfatizou que ampliar a competência da Justiça do Trabalho a qualquer conflito envolvendo plataformas digitais criaria distorções e insegurança jurídica. Sem pedido laboral, o conflito versa sobre “gestão de conta”, típico de relações civis privadas. Assim, a Justiça Comum é competente para julgar tanto o pedido de reativação quanto a indenização eventualmente decorrente.

Como será Cobrado em Prova

???? A ação relativa ao bloqueio de conta de entregador em plataforma digital pertence à Justiça Comum, salvo se houver pedido de reconhecimento de vínculo empregatício.

✅ Correto. A competência trabalhista depende de pedido ou controvérsia laboral.

???? Em litígios envolvendo plataformas, o critério definidor da competência é a causa de pedir e os pedidos, e não a atividade econômica subjacente.

✅ Correto. Trata-se de ratio decidendi do CC 214.451-SP.

Versão Esquematizada

???? Competência — plataforma digital
???? Justiça do Trabalho exige pedido laboral ???? Bloqueio de conta → relação civil ???? Competência da Justiça Comum ???? Critério: causa de pedir + pedidos

Inteiro Teor

     Cinge-se a controvérsia em definir se a demanda, relativa a pedido de reativação de conta bloqueada em plataforma digital de delivery, sem pedido de reconhecimento de vínculo trabalhista ou verbas típicas da relação de trabalho, deve ser processada e julgada pela Justiça do Trabalho ou pela Justiça Comum Estadual.

     A competência da Justiça Comum ou da Justiça do Trabalho é definida a partir da causa de pedir e dos pedidos formulados, em conformidade com a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça.

     Não havendo pedido de reconhecimento de vínculo de emprego nem verbas de natureza trabalhista, a controvérsia decorre de contrato de natureza civil firmado com a plataforma digital de delivery, sendo compete a Justiça Comum Estadual em detrimento da Justiça do Trabalho, portanto.

     Ademais, a jurisprudência do STJ entende que a competência para julgar pretensões relacionadas ao bloqueio ou exclusão de contas e indenizações correspondentes pertença à justiça comum.

7.        IPI – nova isenção após sinistro (PCD)

Destaque

Nos casos de perda total, furto ou roubo do veículo adquirido com isenção de IPI por pessoa com deficiência (PCD), é assegurada nova isenção, mesmo antes de decorrido o prazo de 2 anos, e é inexigível o IPI na transferência dos salvados à seguradora.

AREsp 2.849.743-SP, Rel. Min. Gurgel de Faria, Primeira Turma, 7/10/2025.

Conteúdo-Base

???? Lei 8.989/1995, art. 2º (prazo de 2 anos para nova isenção; exceções interpretadas conforme finalidade extrafiscal).

???? Lei 8.989/1995, art. 6º (perda da isenção somente em alienação voluntária; sinistro não se enquadra).

???? IN RFB 1.769/2017, arts. 11–12 (condicionamento administrativo à cobrança prévia do IPI – afastado pelo STJ).

???? Sinistro, furto ou roubo são eventos involuntários, sem intenção de lucro, incompatíveis com a lógica de punição prevista no art. 6º.

???? O regime do art. 2º da Lei 8.989/1995 visa a facilitar mobilidade e inclusão da PCD, impedindo que eventos imprevisíveis gerem penalização fiscal.

???? A seguradora não pode ser obrigada a recolher IPI, porque não há fato gerador: a transferência dos salvados não é alienação tributável.

Discussão e Tese

???? O STJ analisou se o sinistro ocorrido dentro do prazo de 2 anos impediria a fruição de nova isenção ou ensejaria cobrança de IPI sobre os salvados. A Fazenda defendia interpretação literal rígida do prazo bienal, enquanto a Corte reconheceu que a literalidade deve ser conciliada com a finalidade extrafiscal da política de inclusão de PCD, que seria frustrada caso um evento imprevisível — totalmente alheio à vontade do beneficiário — implicasse perda da isenção.

⚖️ A Turma também pontuou que a transferência de salvados à seguradora, etapa obrigatória no recebimento da indenização, não constitui alienação voluntária nem fato gerador do imposto. Assim, tanto o contribuinte quanto a seguradora permanecem protegidos: o primeiro mantém o direito à nova isenção, o segundo não assume débito indevido. A interpretação restritiva da administração tributária foi afastada por contrariar legalidade estrita e a lógica protetiva da norma.

Como será Cobrado em Prova

???? A transferência dos salvados à seguradora configura alienação antecipada e acarreta a perda da isenção de IPI.

❌ Errado. Não há alienação voluntária; o evento é involuntário e imposto pelo contrato de seguro, afastando o art. 6º.

???? A finalidade extrafiscal da Lei 8.989/1995 exige tratamento protetivo à PCD, permitindo nova isenção, mesmo antes do prazo de 2 anos, quando o fato gerador da perda do veículo não decorre de conduta do beneficiário.

✅ Correto. Esse é o raciocínio empregado no acórdão.

Versão Esquematizada

???? IPI – nova isenção após sinistro (PCD)
???? Sinistro ≠ alienação voluntária ???? Transferência à seguradora → sem fato gerador ???? Finalidade extrafiscal: proteção e mobilidade ???? Nova isenção antes de 2 anos é possível

Inteiro Teor

     A controvérsia tem origem na ação ordinária em que a seguradora, ora recorrida, objetiva provimento jurisdicional para que seja declarada a inconstitucionalidade e ilegalidade do condicionamento da transferência dos salvados de veículo segurado ao prévio pagamento do Imposto sobre Produtos Industrializados – IPI e a inexigibilidade do referido tributo em razão da transferência dos salvados do veículo à seguradora.

     O Juízo de primeiro grau julgou procedente o pedido para reconhecer a inexigibilidade do IPI incidente na transferência da propriedade do veículo, tendo o Tribunal Regional mantido a sentença.

     No caso, pessoa com deficiência (PCD) adquiriu veículo automotor com a isenção de IPI prevista no art. 1º da Lei n. 8.989/1995. O carro sofreu sinistro ainda no prazo de 2 (dois) anos após a aquisição, sendo constatado que o custo de seu reparo com peças novas e originais de fábrica superava 75% de seu valor de mercado, o que implicou sua perda total.

     Como condição de recebimento da indenização, a seguradora requereu a transferência do veículo para o seu nome perante o cadastro do DETRAN e constatou que a referida autarquia condicionou essa transferência à comprovação de pagamento do valor referente ao IPI dispensado na aquisição do automóvel, fundamentando sua exigência nos termos do disposto nos arts. 6º da Lei n. 8.989/1995 e 11 e 12 da Instrução Normativa da Receita Federal do Brasil n. 1.769/2017.

     Contudo, não é possível penalizar nem o contribuinte beneficiário nem a seguradora com a perda da isenção fiscal neste caso, pois nessa relação não há a intenção de lucro. O evento que ocasionou a perda do veículo foi alheio à sua vontade. Assim, nos casos em que o veículo adquirido com isenção fiscal se envolver em acidente que implique sua perda total ou for objeto de furto ou roubo, o beneficiário possui direito a nova isenção para a compra de outro veículo, ainda que não ultrapassado o prazo de 2 anos, previsto no art. 2º da Lei n. 8.989/1995, não havendo que falar na cobrança do tributo da seguradora.

8.        TCDR – tributo direto e art. 166 do CTN

Destaque

O art. 166 do CTN não se aplica à repetição de indébito da Taxa de Coleta e Destinação Final de Resíduos Sólidos (TCDR), por se tratar de tributo direto que não comporta transferência econômica do encargo.

REsp 2.117.022-RS, Rel. Min. Afrânio Vilela, Segunda Turma, 4/11/2025.

Conteúdo-Base

???? CTN, art. 166 (exige prova de não repasse apenas para tributos indiretos).

???? TCDR – natureza (taxa direta; contraprestação ao próprio contribuinte).

???? Tema 232/STJ (CTN, art. 166 inaplicável a tributos diretos).

???? Taxas são tributos diretos, pagos pelo beneficiário imediato do serviço, sem repasse econômico a terceiros.

???? Rateio condominial não configura “repasse de encargo”, mas divisão interna de despesas.

???? Exigir prova de não repasse seria violar jurisprudência consolidada e impor ônus probatório impossível.

Discussão e Tese

???? O STJ examinou se condomínio deveria provar não ter repassado a taxa aos condôminos, para ter direito à repetição do indébito. O Tribunal esclareceu que taxas não comportam repasse econômico, pois remuneram serviço divisível prestado diretamente ao contribuinte — ao contrário de ICMS e IPI, que são típicos tributos indiretos. A controvérsia, portanto, não pode ser analisada pela lógica da repercussão econômica.

⚖️ A Segunda Turma reforçou que, diante da jurisprudência vinculante do Tema 232, qualquer decisão que exija prova de não repasse em tributos diretos contraria o CTN e impõe ônus probatório incompatível com a estrutura do tributo. Assim, reconheceu o direito à restituição sem necessidade de demonstração complementar.

Como será Cobrado em Prova

???? Para reaver valores pagos de TCDR, o contribuinte não precisa provar que não repassou o encargo financeiro ao usuário final.

✅ Correto. O CTN art. 166 aplica-se apenas a tributos indiretos; a TCDR é taxa direta.

???? O rateio interno entre condôminos não descaracteriza a natureza direta da taxa nem converte o condomínio em “repassador” econômico.

✅ Correto. Esse tema é expressamente destacado no acórdão.

Versão Esquematizada

???? TCDR – tributo direto
                 ???? CTN 166 inaplicável ???? Taxa → sem transferência econômica ???? Tema 232/STJ reforça a tese ???? Restituição sem prova de não repasse

Inteiro Teor

     Trata-se de recurso especial interposto por condomínio contra acórdão que negou provimento à apelação, mantendo a improcedência do pedido de repetição de indébito referente à Taxa de Coleta e Destinação Final de Resíduos Sólidos – TCDR, sob o fundamento de que o condomínio não comprovou a ausência de repasse do encargo financeiro aos condôminos, conforme exigido pelo art. 166 do Código Tributário Nacional – CTN.

     Portanto, a controvérsia consiste em saber se o art. 166 do CTN é aplicável à repetição de indébito da Taxa de Coleta e Destinação Final de Resíduos Sólidos, considerando sua natureza de tributo direto.

     Isso posto, registre-se que o art. 166 do CTN aplica-se a tributos que comportam transferência do encargo financeiro, o que não ocorre com tributos diretos, como a TCDR, cuja contraprestação está diretamente vinculada à atividade estatal prestada ao contribuinte.

     A Primeira Seção do Superior Tribunal de Justiça – STJ, ao julgar o Tema 232, firmou a tese de que, na repetição de indébito de tributo direto, não se exige a comprovação de que não houve repasse do encargo financeiro.

     A relação entre o condomínio e os condôminos, bem como o rateio das despesas condominiais, não caracteriza transferência econômica do tributo, afastando a aplicação do art. 166 do CTN.

     Destarte, o entendimento do Tribunal de origem, ao exigir a comprovação de não repasse do encargo financeiro, contraria a jurisprudência consolidada do STJ sobre a inaplicabilidade do art. 166 do CTN a tributos diretos.

     Assim, o art. 166 do CTN não se aplica à repetição de indébito de tributos diretos, como a Taxa de Coleta e Destinação Final de Resíduos Sólidos, que não comportam transferência do encargo financeiro.

9.        Seguro de vida – “roleta-russa”, embriaguez e intencionalidade

Destaque

A conduta de “roleta-russa”, embora temerária, quando praticada sem intenção suicida e sob embriaguez, não caracteriza agravamento intencional do risco (art. 768 do CC), devendo a seguradora pagar a indenização.

REsp 2.204.888-PR, Rel. Min. Nancy Andrighi, Terceira Turma, maioria, 4/11/2025.

Conteúdo-Base

???? CC, art. 768 (perda da garantia apenas quando o segurado agrava o risco intencionalmente).

???? Súmula 620/STJ (embriaguez não exclui indenização de seguro de vida).

???? Lei 10.406/2002 – boa-fé objetiva (orienta interpretação protetiva em contratos de seguro).

???? Agravamento intencional exige dolo ou culpa gravíssima dirigida a frustrar o risco segurado.

???? Atos praticados em estado de alteração mental (embriaguez) não configuram intenção de produzir o sinistro.

???? A distinção entre suicídio e fatalidade culposa é crucial: suicídio exige propósito deliberado.

???? O seguro de vida tem cobertura ampla e só exclui hipóteses expressamente previstas em lei ou contrato — jamais presumidas.

Discussão e Tese

???? A Turma avaliou se a “roleta-russa”, embora perigosa, poderia ser equiparada ao suicídio ou a ato doloso voltado a agravar o risco segurado. A seguradora sustentava que a temeridade seria suficiente para caracterizar intenção; porém, o STJ enfatizou que o art. 768 exige intenção dirigida ao resultado, não mera imprudência, e que a embriaguez altera a capacidade deliberativa do agente, afastando o dolo.

⚖️ Além disso, a Corte reforçou que o seguro de vida possui função essencialmente protetiva — cláusulas limitativas devem ser interpretadas restritivamente. Como os autos demonstravam total ausência de propósito suicida e indicavam que o segurado acreditava estar lidando com arma desmuniciada, concluiu-se que o evento foi uma fatalidade culposa, não um agravamento intencional do risco. A indenização é devida.

Como será Cobrado em Prova

???? A prática de “roleta-russa” configura agravamento intencional do risco, afastando a indenização securitária.

❌ Errado. Sem intenção suicida ou propósito deliberado de causar o sinistro, não há aplicação do art. 768.

???? A embriaguez do segurado afasta a cobertura do seguro de vida.

❌ Errado. Contrário ao entendimento consolidado na Súmula 620 do STJ.

Versão Esquematizada

???? Seguro de vida – roleta-russa
???? Agravamento intencional exige dolo ???? Embriaguez → não exclui cobertura ???? Fatalidade culposa ≠ suicídio ???? Indenização devida

Inteiro Teor

     Cinge-se a controvérsia em decidir se resta configurado o agravamento intencional de risco quando o segurado, em estado de embriaguez, vai a óbito depois de atirar contra si com uma arma que acreditava não funcionar.

     O art. 768 do CC disciplina que “o segurado perderá o direito à garantia se agravar intencionalmente o risco objeto do contrato“.

     Somente uma conduta imputada ao segurado, que, por dolo ou culpa grave, incremente o risco contratado, dá azo à perda da indenização securitária.

     A presunção de boa-fé somente será afastada se existirem provas da má-fé do segurado que intencionalmente agravou o risco do contrato.

     No contrato de seguro de vida, consolidou-se, a orientação mais benéfica ao consumidor, no sentido de afastar o pagamento da apólice tão somente quando ocorrer suicídio dentro dos dois primeiros anos de contrato. Nas demais situações, ocorrendo o sinistro morte do segurado e inexistente a má-fé dele, a indenização securitária deve ser paga ao beneficiário, visto que a cobertura do seguro de vida é ampla.

     No seguro de vida, é vedada a exclusão de cobertura na hipótese de sinistros ou acidentes decorrentes de atos praticados pelo segurado em estado de insanidade mental, de alcoolismo ou sob efeito de substâncias tóxicas.

     A conduta de atirar em si mesmo só poderia ser classificada como suicídio se a pessoa tivesse a intenção de morrer. A percepção sobre a realidade é o que transforma o ato de um potencial suicídio em uma fatalidade culposa. Ademais, porque, nos termos da jurisprudência supracitada, os acidentes que levam à morte, se foram decorrentes de embriaguez, em regra, não justificam a perda da garantia do seguro de vida.

     Nesse sentido, a Súmula 620/STJ dispõe: “a embriaguez do segurado não exime a seguradora do pagamento da indenização prevista em contrato de seguro de vida”.

     A conduta da “roleta-russa”, embora temerária, quando comprovadamente realizada sem a intenção suicida e sob o efeito de embriaguez, não é causa para a perda de indenização do seguro de vida.

     No caso analisado, embora o segurado tenha atirado contra si, o fato de esse ato ter sido decorrente de embriaguez e sem a intenção deliberada de tirar a própria vida afasta a aplicação do art. 768 do Código Civil.

10.         Carta psicografada – inadmissibilidade da prova

Destaque

A carta psicografada é absolutamente destituída de idoneidade epistêmica e não pode ser admitida como prova, devendo ser desentranhada dos autos do Tribunal do Júri.

RHC 167.478-MS, Rel. Min. Rogerio Schietti Cruz, Sexta Turma, unanimidade, 21/10/2025.

Conteúdo-Base

???? CPP, arts. 155 e 158-A a 158-F (prova deve estar sujeita a controle racional; cadeia de custódia assegura autenticidade).

???? CF, art. 5º LIV e LV (devido processo legal, contraditório e ampla defesa).

???? CPP, art. 478 I–II (juiz-presidente deve impedir prova que comprometa julgamento racional).

???? Provas irracionais — sem mínima possibilidade de conduzir a inferências fáticas — não podem compor o acervo cognitivo do Júri.

???? Psicografia não possui reconhecimento científico; sua aceitação é ato de fé e não atende requisitos de relevância + licitude + idoneidade.

???? A idoneidade epistêmica é pressuposto mínimo da admissibilidade, não apenas da valoração.

Discussão e Tese

???? O STJ analisou se a psicografia poderia permanecer nos autos sob o argumento de “ampla defesa” e de “busca da verdade real”. O Tribunal destacou que o Júri julga por íntima convicção, o que exige filtragem mais rigorosa das provas: se elementos irracionais forem submetidos aos jurados, há risco real de veredictos arbitrários e incompatíveis com o devido processo legal. A ausência de qualquer suporte empírico ou metodológico faz da psicografia um meio probatório epistemicamente nulo.

⚖️ A Turma também diferenciou dois planos: licitude e fiabilidade. Embora a obtenção da psicografia não seja ilícita (não viola direitos), ela é inadequada como prova, pois não permite reconstrução racional dos fatos. Assim, sua manutenção violaria o dever do presidente do Júri de eliminar material incapaz de orientar decisões responsáveis. A psicografia pode, no máximo, funcionar como “pista investigativa”, jamais como suporte cognitivo de decisão judicial.

Como será Cobrado em Prova

???? A carta psicografada pode ser utilizada como prova no Tribunal do Júri se corroborada por outros elementos probatórios.

❌ Errado. A psicografia não possui idoneidade epistêmica mínima, de modo que não ingressa sequer na fase instrutória — deve ser desentranhada.

???? A inadmissibilidade da prova pode decorrer da ausência de racionalidade, paralelamente à questão da licitude.

✅ Correto. Este ponto aparece no inteiro teor ao diferenciar prova ilícita (art. 157) de prova epistemicamente inútil. Por isso, a psicografia poderia (em tese) servir como elemento meramente investigativo, mas jamais como prova judicial.

Versão Esquematizada

???? Psicografia – prova inadmissível
???? Requisito mínimo: idoneidade epistêmica ???? Ausência total de base científica → retirada dos autos ???? Pode ser “pista”, não prova ???? Controle reforçado no Júri, devido à íntima convicção

Inteiro Teor

     Cinge-se a controvérsia em verificar a admissibilidade de carta psicografada no procedimento especial do Tribunal do Júri.

     No sistema de livre apreciação da prova, como regra, não há hierarquia prévia entre os meios de prova, tampouco valor predeterminado por lei para cada meio de prova. A regra é a admissibilidade de todas as provas relevantes (desde que lícitas) para o acertamento dos fatos. Sob o marco da concepção racionalista, a liberdade de apreciação da prova deve ser preenchida por critérios racionais de apuração dos fatos, a fim de evitar a substituição do arbítrio legislativo pelo arbítrio judicial.

     Tais diretrizes devem se aplicar, inclusive, aos julgamentos promovidos pelo Tribunal do Júri. O procedimento especial aplicável ao Tribunal do Júri tem por comandos constitucionais (a) a plenitude de defesa, (b) o sigilo das votações, (c) a soberania dos veredictos e (d) a competência para o julgamento dos crimes dolosos contra a vida.

     Todas essas garantias fundamentais devem ser interpretadas de modo a assegurar ao acusado a submissão a um julgamento racional, de cunho cognoscitivo, e não potestativo, razão pela qual é necessário um juízo de admissibilidade rigoroso, que evite a incorporação de provas inidôneas no processo que conduzam a veredictos irracionais. Assim, devem ser mantidos nos autos apenas os elementos de prova dos quais se possam extrair inferências racionais sobre as hipóteses em conflito.

     A admissibilidade de uma prova no processo judicial é condicionada a dois requisitos cumulativos: (i) a relevância da prova e (ii) a legalidade (licitude e legitimidade) dos meios de obtenção e produção da prova.

     Por força do dever de racionalidade das decisões judiciais, só podem ser admitidas no processo provas das quais se possam inferir conclusões racionais sobre os fatos a serem provados. A racionalidade das conclusões depende, logicamente, da racionalidade das premissas. Por isso, em um processo que visa à prolação de decisões racionais, não se pode admitir a produção de provas irracionais.

     A inadmissão de uma prova por inidoneidade epistêmica não é, todavia, uma atividade simplória, pois a fiabilidade da prova é um atributo gradual, e não binário (modelo de tudo-ou-nada). A saber, as provas não são apenas fiáveis ou não fiáveis, mas sim mais ou menos fiáveis, de modo progressivo e gradual. Nesse sentido, a fiabilidade consiste, inclusive, em um critério de valoração da prova, de modo que apenas excepcionalmente a fiabilidade deve ser examinada na anterior etapa de verificação da sua admissibilidade no processo.

     Por isso, em um regime inclusionista (que visa à máxima inclusão de provas relevantes no processo), no exame da idoneidade epistêmica como requisito de admissibilidade da prova, deve-se aferir tão somente se há mínima aptidão do meio de prova para a corroboração do fato pertinente ou relevante (grau mínimo de fiabilidade).

     Apenas a inadequação epistêmica absoluta e manifesta da prova, decorrente da fiabilidade inexistente, ínfima ou desprezível do meio de prova, justifica a inadmissão da prova. Se a prova tiver fiabilidade apenas baixa ou questionável, deve ser admitida no processo.

     Nos processos submetidos ao procedimento especial do Tribunal do Júri, as decisões do Conselho de Sentença não são motivadas, nem objeto de prévia deliberação entre os jurados. Por isso, é especialmente importante o controle rigoroso da admissibilidade da prova, sobretudo no tocante à sua idoneidade epistêmica. É poder-dever do juiz que preside o processo filtrar o material probatório a ser submetido ao conhecimento do corpo de jurados, como forma de promover a racionalidade dos veredictos.

     Além do controle de admissibilidade da acusação por ocasião da decisão de pronúncia, o juiz presidente do processo deve evitar o contato dos jurados com provas relativas a fatos impertinentes ou irrelevantes ou com provas completamente desprovidas de idoneidade epistêmica que possam conduzir, consequentemente, a veredictos irracionais.

     Todas as sentenças devem ser devidamente fundamentadas, sejam elas condenatórias ou absolutórias. Nenhuma das partes tem o direito de produzir provas impertinentes ou irrelevantes (que tumultuem e desvirtuem o processo) ou epistemicamente inidôneas (que conduzam a julgamentos irracionais e incontroláveis e, no limite, induzam o órgão julgador, notadamente o corpo de jurados, em erro).

Não é aceitável que o Estado-investigação e o Estado-acusação conduzam a atividade probatória a partir de provas espúrias, sem nenhum respaldo em regras científicas, técnicas ou de experiência, que permitam inferir conclusões racionais sobre a probabilidade das hipóteses em conflito.

     Dessa forma, o processo cognitivo, mesmo submetido ao Tribunal do Júri, deve ser pautado por cânones de racionalidade, notadamente no que se refere à fase instrutória, que visa à produção de provas relevantes sobre as hipóteses fáticas alegadas pelas partes. Consequentemente, são inadmissíveis no processo provas desprovidas de idoneidade epistêmica, as quais potencializam o risco de julgamentos irracionais.

     Quanto à psicografia, ela consiste no ato pelo qual uma pessoa viva (referida como médium) declara ou transmite mensagens que haveriam sido passadas a ela por uma pessoa morta, as quais podem se materializar pelo médium em um documento escrito, comumente denominado carta psicografada.

     A psicografia já foi objeto de tentativas científicas de demonstrá-la e que resultaram frustradas. Ademais, não há nenhuma regra técnica ou máxima de experiência que ampare a noção de psicografia. Daí porque, em suma, atualmente, não há absolutamente nenhum apoio racional quanto à possibilidade de psicografia.

     No cenário atual, a crença na psicografia consiste em um ato de fé. Atos de fé (seja ela religiosa ou não), por definição, prescindem de demonstração racional e, portanto, são opostos aos atos de prova, que visam justamente à demonstração racional dos fatos alegados no processo. Um ato de fé não pode servir como ato de prova, por serem atos diametralmente opostos e incompatíveis entre si.

     A idoneidade epistêmica da carta psicografada dependeria de existir conhecimento racional sobre a possibilidade da psicografia, que não poderia estar amparada exclusivamente em um ato de fé. Assim, a ausência de comprovação científica atual quanto à possibilidade da psicografia leva à sua inidoneidade epistêmica e, consequentemente, obsta o uso da psicografia como fonte de prova no processo judicial.

     A compatibilidade com uma convicção religiosa específica (espiritismo) e a incompatibilidade com outras não torna uma prova ilícita por violação ao direito fundamental de liberdade religiosa ou mesmo à laicidade estatal.

     Mesmo que não houvesse nenhuma controvérsia religiosa sobre a questão, a carta psicografada ainda seria uma prova inadmissível por falta de apoio científico quanto à possibilidade da psicografia. O apelo à religião como substrato para a admissão da psicografia, neste caso, é mera consequência da ausência de apoio racional a essa fonte de prova, de modo que o vício primordial é de irrelevância (inidoneidade epistêmica), e não de ilicitude da prova.

     Nesse sentido, vale notar que a obtenção e a produção de uma carta psicografada não violam nenhuma norma de direito material ou processual. Se uma carta psicografada é apreendida e juntada a um processo, isso, a princípio, não viola nenhum direito das partes ou mesmo de terceiros. Tão somente a valoração (positiva) dessa prova é que violaria o direito a um julgamento racional. Assim, não há um vício de licitude, pois a obtenção e produção dessa prova é lícita e legítima. O vício está na fiabilidade dela (relevância epistemológica).

     Essa distinção é relevante, pois a ilicitude da prova acarreta a ilicitude das provas dela derivadas, na forma do art. 157, § 1º, do CPP, mas não a falta de fiabilidade. Por consequência, especialmente na fase de investigação preliminar, não se pode descartar a possibilidade de que uma carta psicografada sirva como mero elemento de informação (“pista”) cujo conteúdo pode ser apurado e pode conduzir à obtenção de outros elementos de informação ou mesmo de prova, sem que esses outros elementos estejam necessariamente contaminados pela falta de fiabilidade da carta.

     Assim, cartas psicografadas e denúncias anônimas não têm valor probatório, mas podem ter valor investigativo. É dizer, o conteúdo da informação constante da carta psicografada ou da denúncia anônima pode ser apurado por outros meios de obtenção de prova na fase de investigação preliminar.

     O fundamento primordial da inadmissibilidade da carta psicografada consiste, repita-se, na absoluta inidoneidade epistêmica da psicografia como meio de prova.

     Por conseguinte, no processo submetido a julgamento pelo Tribunal do Júri, é imperativo o seu desentranhamento dos autos, a fim de evitar que seja valorada pelos jurados e conduza a julgamentos irracionais.

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