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Defensoria Pública, ADI n. 4636 e Desnecessidade de Inscrição na OAB

Por Marcos Vinícius Manso Lopes Gomes (Defensor Público do Estado de São Paulo)

Momento histórico e extremamente importante para a Defensoria Pública. A nobre carreira, além de ter sua autonomia concretizada, foi definitivamente confirmada como a Instituição responsável, de forma holística, como expressão e instrumento do Estado de opção democrática, para a tutela e promoção dos Direitos Humanos, notadamente dos grupos vulneráveis.

No importante voto do Ministro Gilmar Mendes na ADI n. 4636, seguido pelos seus pares – a exceção do pedido de vista do ministro Dias Toffolli -, restou solidificado o entendimento acerca da desnecessidade de inscrição dos defensores públicos para exercer suas atividades, colocando um termo final na distinção entre Defensoria Pública e Advocacia. 

Buscar-se-á analisar os tópicos e fundamentos constantes no histórico voto, que seguiu o entendimento doutrinário defensorial e a vontade do constituinte derivado, que diferenciou as instituições em seções específicas na Constituição Federal.

I – A Defensoria Pública: natureza constitucional

No que tange ao primeiro tópico apresentado pelo ministro, ressalta-se que a Defensoria Pública não se localiza dentro do Poder Judiciário, nem do Poder Legislativo e muito menos no Poder Executivo. De acordo com a Constituição Federal, a Defensoria Pública é uma instituição que compõe as Funções Essenciais à Justiça – ao lado do Ministério Público, da Advocacia Pública e da Advocacia Privada. Após as instituições serem diferenciadas pela Constituição, com uma seção específica para a Advocacia (Seção III) e outra para a Defensoria Pública (Seção IV), a distinção restou definitivamente solidificada pela Corte Suprema.

“Com o advento da Emenda Constitucional 80/2014, qualquer possibilidade de crise identitária foi sanada. A Defensoria Pública teve sua personalidade bem definida, com atribuições devidamente explicitadas, sem qualquer espaço para dúvidas ou ilações” (Trecho do voto do Ministro Gilmar Mendes na ADI n. 4636).

A Defensoria Pública deverá ser vista como uma instituição, ou seja, pessoa jurídica extrapoder – desvinculada de qualquer um dos Poderes do Estado e também da Advocacia. A instituição, regulamentada conforme as diretrizes constitucionais por meio da Lei Complementar n. 80/94, solidificou-se no cenário nacional, em especial ante a experiência bem-sucedida. 

“O que um dia consubstanciava uma indefinição legislativa, pela inovação criada pela constituinte originário, hoje toma rumos certos e bem delineados. O passar dos anos e o advento da Lei Complementar 80, em 1994, a Lei Orgânica da Defensoria Pública, iniciou o desenho institucional. Aos poucos, tal contorno mostrou-se insuficiente, em face das circunstâncias fático-sociais do país e do futuro que se pretendia (e ainda se pretende) ver concretizar, nos próprios termos dos traçados objetivos republicanos” (Trecho do voto do Ministro Gilmar Mendes na ADI n. 4636).

Vocação relaciona-se à uma aptidão para a realização de uma atividade, pautando-se por diretrizes, princípios e finalidades. A vocação pode ser desenvolvida, aprimorada e lapidada, sendo certo que se trata de um conceito que não é estanque, podendo sofrer variações no tempo e no espaço.

Com fulcro no art. 3º-A, da Lei Complementar n. 80/94 e no art. 134, da Constituição Federal, pode-se afirmar que vocação da Defensoria Pública está relacionada à defesa dos hipossuficientes/vulneráveis, de forma preventiva ou demandista, judicial ou extrajudicial, na defesa e promoção dos direitos humanos, de forma individual ou coletiva, primando pela dignidade da pessoa humana, pela redução das desigualdades sociais e pela afirmação do Estado de opção democrática, sempre almejando preservar e concretizar o contraditório e a ampla defesa.

“Nesse ponto, não se pode limitar a Defensoria Pública, nos atuais moldes, a um mero conjunto de defensores dativos. Tal se consubstancia em visão ultrapassada, que ignora a interpretação sistemática a ser feita. Anote-se que a norma está inserida em um conjunto organizado de ideias, devendo ser seu sentido extraído da lógica geral, coadunando-se com o viés metodológico de todo arcabouço normativo. Faz-se mister encadear todos os dispositivos e normas, evidenciando-se, destarte, a mens legis” (Trecho do voto do Ministro Gilmar Mendes na ADI n. 4636).

II. Da constitucionalidade da expressão “e jurídicas” constante do inciso V do art. 4º da Lei Complementar 80/1994, com a redação dada pela Lei Complementar 132/2009:

Contemporaneamente, a doutrina institucional realiza uma nova classificação das funções institucionais, uma vez que teríamos atribuições tradicionais e atribuições contemporâneas (ou não tradicionais). As atribuições tradicionais possuem um caráter individual, liberal, econômico, ou seja, tendencialmente individualista. Por seu turno, as atribuições contemporâneas possuiriam um viés social, coletivo, ou seja, tendencialmente solidarista.

“Conforme se depreende do texto constitucional, especialmente após a já citada emenda 80/2014, é evidente ter a Defensoria Pública, por obrigação, prestar assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos. Todavia, suas funções a essas não se restringem. Deve a Defensoria Pública zelar pelos interesses e direitos de todos os necessitados, não apenas sob o viés financeiro desse conceito, mas também sob o prisma da hipossuficiência e vulnerabilidade decorrentes de razões outras (idade, gênero, etnia, condição física ou mental, entre outras)” (Trecho do voto do Ministro Gilmar Mendes na ADI n. 4636).

Além das vulnerabilidades exemplificativas acima apontadas, a ideia de vulnerabilidade organizacional, que legitima a Defensoria Pública na atuação em tutela coletiva, corresponde a uma situação permanente ou provisória, que fragiliza os sujeitos de direitos, dificultando o acesso à justiça e a concretização de direitos fundamentais, em razão da insuficiência e/ou dificuldade de tutelar determinados direitos de forma meramente individual. Em nossa Teoria das Vulnerabilidades, defendemos uma segunda dimensão das vulnerabilidades, as quais estariam relacionadas à um viés solidarista e coletivo, desvinculada de critérios econômicos.

“Conclui-se que a Defensoria Pública, agente de transformação social, tem por tarefa assistir aqueles que, de alguma forma, encontram barreiras para exercitar seus direitos. Naturalmente sua atribuição precípua é o resguardo dos interesses dos carentes vistos sob o prisma financeiro. Todavia, ressalto, não é a única. Ora, as desigualdades responsáveis pela intensa instabilidade social não são apenas de ordem econômica” (Trecho do voto do Ministro Gilmar Mendes na ADI n. 4636).

Em sintonia com esse novo viés de atuação defensorial, a atuação como ombudsman, que pode ser realizada pela Defensoria Pública, está relacionada à uma instituição independente, com escopo de proteger a população, principalmente aquela marginalizada, de forma individual ou coletiva, judicial ou extrajudicial, contra os abusos e atos arbitrários do Estado, buscando prevenir e remediar quaisquer atos que violarem seus direitos e garantias fundamentais. No que tange à Defensoria Pública, além de ser uma instituição autônoma (art. 134, §2º, CF), possui a finalidade de promover e tutelar os direitos humanos (Art. 134, caput, CF). Assim, possui a independência necessária para alcançar seus objetivos institucionais (art. 3º-A, LC n. 80/94), notadamente de promover a dignidade da pessoa humana e defender o Estado de opção democrática. 

“A bem da verdade, examinando o projeto constitucional de resguardo dos direitos humanos, podemos dizer que a Defensoria Pública é verdadeiro ombudsman , que deve zelar pela concretização do estado democrático de direito, promoção dos direitos humanos e defesa dos necessitados, visto tal conceito da forma mais ampla possível, tudo com o objetivo de dissipar, tanto quanto possível, as desigualdades do Brasil, hoje quase perenes” (Trecho do voto do Ministro Gilmar Mendes na ADI n. 4636).

III. Da constitucionalidade do § 6º do art. 4º da Lei Complementar 80 /1994, com a redação dada pela Lei Complementar 132/2009:

No tópico final do voto, o ministro realiza distinções cristalinas envolvendo a Defensoria Pública e a Advocacia, relacionada a questões legislativas (abstratas) e pragmáticas (concretas). Além da distinção topográfica, constitucional, imperioso ressaltar que diferentemente do advogado, nos termos do dispositivo em análise, a capacidade postulatória do Defensor Público decorre exclusivamente de sua nomeação e posse no cargo público, sendo certo que sua fiscalização funcional é realizada pelas Corregedorias da Defensoria Pública. A atuação do defensor independe de mandato (ressalvado os casos para os quais a lei exija poderes especiais), sendo certo que o defensor público presenta a instituição, podendo um substituir-se uns aos outros.

“Partindo-se do raciocínio do autor da ação, forçoso concluir que, com a alteração constitucional de 2014, que alterou a disposição do Capítulo IV da Constituição Federal, não resta mais dúvidas, portanto, em relação à natureza da atividade dos membros da Defensoria Pública. Tais membros definitivamente não se confundem com advogados privados ou públicos” (Trecho do voto do Ministro Gilmar Mendes na ADI n. 4636).

“A diferença entre a atuação de um advogado (particular) e a de um defensor público é clamorosa, perceptível inclusive antes do advento da EC 80/14. O primeiro, em ministério privado, tem por incumbência primordial a defesa dos interesses pessoais do cliente. O segundo, detentor de cargo público, tem por escopo principal assegurar garantia do amplo acesso à justiça, não sendo legitimado por qualquer interesse privado. Tais características não afastam, obviamente, a prestação de serviço público e exercício de função social pelo advogado, tampouco dispensa o defensor do interesse pessoal do assistido. O ponto nevrálgico é a definição das finalidades transcendentes” (Trecho do voto do Ministro Gilmar Mendes na ADI n. 4636).

Essa orientação já é seguida por muitos doutrinadores, bem como pelo Superior Tribunal de Justiça, que realizou interpretação conforme a Constituição do art. 3º, §1º, da Lei n. 8.906/94, conforme se verifica no REsp 1710155, para defender a desnecessidade de inscrição do defensor público para exercer suas atividades. 

“A Lei Complementar 80, atualizada pela Lei Complementar 132, em nenhum momento determina que os defensores públicos se inscrevam ou permaneçam filiados aos quadros da Ordem dos Advogados do Brasil. Sendo lei especial e posterior, nada impede que ela dispense os Defensores Públicos da inscrição na OAB para o exercício de suas funções” (Trecho do voto do Ministro Gilmar Mendes na ADI n. 4636).

Sem medo de errar, ressaltamos que a Defensoria Pública deveria ser o principal investimento dos Poderes Públicos, notadamente em uma sociedade onde o número de hipossuficientes econômicos vem aumentando e a quantidade de pessoas em situação de vulnerabilidade econômica e social se agiganta. 

Pensar na Defensoria Pública é pensar no futuro, nos Direitos Humanos, na cidadania, na dignidade. O retorno social e humano conferido pela atuação institucional é incalculável. Quanto mais reforçada a Defensoria Pública, mais forte é a democracia!

“Ante o exposto, julgo improcedente a ação direta de inconstitucionalidade. Confiro ainda interpretação conforme à Constituição ao art. 3º, § 1º, da Lei 8.906/1994, declarando-se inconstitucional qualquer interpretação que resulte no condicionamento da capacidade postulatória dos membros da Defensoria Pública à inscrição dos Defensores Públicos na Ordem dos Advogados do Brasil” (Trecho do voto do Ministro Gilmar Mendes na ADI n. 4636).

A distinção é tão robusta que não é difícil visualizar a impossibilidade de manutenção de registro na OAB pelo defensor público. Nesse caso, caberá ao defensor público licenciar-se, na forma do art. 12, II, do Estatuto da OAB, vez que estamos diante do exercício, em caráter temporário, de atividade incompatível com o exercício da advocacia. Assim, levando-se em consideração a interpretação conforme a constituição concretizada pela Suprema Corte, aplicar-se-ia, por analogia, o art. 28, II, do Estatuto da OAB, concluindo-se que a atividade da advocacia é incompatível com a atividade do defensor público, agente político de transformação social que compõe instituição independente consubstanciada em uma cláusula pétrea da cidadania. 

Marcos Vinícius Manso Lopes Gomes

Entusiasta da Defensoria Pública

Professor do Estratégia Carreiras Jurídicas

Instagram: @marcoslopesgomes

Telegram: t.me/marcoslopesgomes

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