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Coronavírus e os contratos de trabalho: MP 927/2020 (após revogação parcial)

Olá, pessoal!

Como estão nesta quarentena? =) Espero que estejam bem e, principalmente, com muita saúde!

Hoje estou passando para comentar as novidades trazidas ao Direito do Trabalho pela MP 927, de 22 de março de 2020, editada em razão da situação de calamidade de saúde pública decorrente do novo coronavírus, bem como a revogação de um de seus dispositivos anunciada pelo Presidente Bolsonaro na tarde de hoje.

Nem preciso comentar o quão está sendo (e será) difícil este momento, impondo fortes desafios na saúde pública, mas também na área econômica, refletindo significativamente nas relações de trabalho preexistentes.

O momento é mesmo de flexibilização das relações trabalhistas, a fim de sobrevivermos à crise econômica que se instaurou, de modo a buscarmos minimizar, ao máximo, seus fúnebres efeitos nas relações de trabalho e na renda dos brasileiros.

Com a redução no faturamento das empresas, há uma forte tendência de que os empregadores, fazendo uso do seu direito à livre extinção contratual, demitam seus empregados, justamente em um momento em que suas famílias mais necessitam. Por outro lado, não se poderia obrigar os empregadores a assumirem o ônus de continuar mantendo sua folha de pagamento, ante a significativa queda do fluxo de caixa neste período (ou, em alguns casos, sem que seja possível a prestação de serviços por parte dos empregados).

Assim sendo, o Governo Federal editou a MP 927, de 22 de março de 2020, listando uma série de medidas que podem ser adotadas pelos empregadores como alternativas à rescisão contratual, a saber (MP 927, art. 3º).

A ideia é que empregados e empregadores pactuem, por meio de acordos individuais escritos, uma série de flexibilizações dos direitos trabalhistas, desde que respeitadas as normas da Constituição.

As medidas possuem validade limitada ao estado de emergência, em princípio expirando em 31/12/2020 (DL 6/2020).

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Em primeiro lugar, destaco seu artigo 2º, o que confere uma ampla autorização a empregados e empreagdores para que, bilateralmente, flexibilizem direitos relacionados ao contrato de trabalho (desde que respeitadas as normas da CF). Tal flexibilização não dependeria de negociação coletiva, podendo ser pactuada diretamente entre empregado e empregador, com prevalência sobre as normas coletivas e sobre a legislação.

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Em outro giro, a MP permitiu outras medidas que podem ser manejadas pelo empregador, destacando-se as seguintes:

I – o teletrabalho;

II – a antecipação de férias individuais;

III – a concessão de férias coletivas;

IV – o aproveitamento e a antecipação de feriados;

V – o banco de horas;

VI – a suspensão de exigências administrativas em segurança e saúde no trabalho; (medida revogada posteriormente)

VII – o direcionamento do trabalhador para qualificação; e

VIII – o diferimento do recolhimento do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço – FGTS.

Reparem a grande maioria destas medidas (como o teletrabalho, o banco de horas, as férias coletivas e os programas de qualificação) já existia em nosso ordenamento jurídico. Para estas, o mérito da MP 927 foi simplificar ou facilitar sua utilização, como passarei a detalhar a seguir.

Nesse sentido, todas as medidas acima destacadas podem ser adotadas sem qualquer negociação coletiva envolvendo o sindicato dos empregados, até mesmo porque, com a quarentena recomendada, seria inconcebível qualquer exigência nesse sentido. Assim, basta um acordo individual escrito entre empregado e empregador.

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Adiante comentaremos cada uma destas alternativas, ressaltando seus principais aspectos e, quando couber, as distinções com o regime celetista.

I – Teletrabalho

O teletrabalho já era uma realidade antes da MP 927, sendo objeto de regulamentação por meio da reforma trabalhista (CLT, art. 75-A e seguintes). As diferenças para o regime temporário previsto pela MP são as seguintes:

               – o empregador pode, a seu critério, determinar, unilateralmente, que os empregados passem a laborar em regime de teletrabalho (o que normalmente exigiria consentimento do empregado por força do §1º do art. 75-C da CLT)

               – dispensado o registro prévio da alteração no contrato individual de trabalho (que normalmente seria exigido pelo caput do art. 75-C da CLT)

               – o empregador deve notificar o empregado com antecedência mínima de 48 horas (em determinadas situações a CLT previa o prazo de 15 dias, a exemplo do art. 75-C, §2º)

II – Antecipação das férias individuais

Pelo texto da MP 927, o empregador poderá antecipar as férias de seus empregados. Ou seja, mesmo aqueles períodos de férias cujos períodos aquisitivos não tenham sido completados poderão ser concedidos neste momento.

No entanto, há algumas distinções importantes quanto à concessão tradicional de férias, a saber:

               – o empregador deverá notificar a concessão das férias com, pelo menos, 48 horas de antecedência (o prazo então previsto na CLT é de 30 dias – CLT, art. 135, caput)

               – o pagamento da remuneração de férias poderá ser realizado juntamente com o da remuneração, isto é, até o 5º dia útil do mês seguinte (pelo regime tradicional da CLT, o pagamento deveria ocorrer em até 2 dias antes das férias – CLT, art. 145)

               – o pagamento do terço constitucional (CF, art. 7º, XVII) poderá ocorrer em momento posterior, desde que seja até 20 de dezembro deste ano

Além disso, deverá ser priorizada a concessão de férias para aqueles empregados que estejam no grupo de risco, bem como poderão ser interrompidas férias de profissionais da área de saúde ou funções consideradas essenciais (previstos no Decreto 10.282/2020).

III – Concessão de férias coletivas

A MP 927 também flexibilizou a concessão de férias coletivas, permitindo o seguinte:

               – períodos de férias com duração inferior a 10 dias corridos (diferentemente do regramento celetista para férias coletivas – art. 139, §2º)

               – possibilidade de termos mais de 2 períodos de férias ao ano (diferentemente do regramento celetista para férias coletivas – art. 139, §2º)

               – dispensa da comunicação aos órgãos da Secretaria especial do Trabalho e Previdência Social (normalmente exigida por força da CLT, art. 139, § 2º)

IV – Aproveitamento e antecipação de feriados

A MP 927 também permitiu ao empregador antecipar unilateralmente o gozo de feriados, especialmente aqueles não religiosos. Isto poderá ser feito sem a necessidade de negociação coletiva (diferentemente do regime tradicional da CLT – art. 611-A, XI).

O feriado de 7 de setembro (que neste ano recairá em uma segunda-feira) poderia ser antecipado por ato do empregador para algum dia útil de abril, por exemplo. Assim, quando chegarmos em 7 de setembro, o empregado teria que trabalhar normalmente (em razão da antecipação do seu feriado), sem receber um acréscimo por isto.

Neste caso, deve-se avisar os empregados com 48 horas de antecedência, detalhando quais feriados seriam antecipados.

Esta antecipação também poderia ser utilizada para fins de compensação futura do saldo em banco de horas.

Tratando-se de feriados religiosos, no entanto, a antecipação dependerá de concordância do empregado, mediante manifestação em acordo individual escrito. 

V – Banco de horas

A MP 927 autorizou o estabelecimento de banco de horas, de sorte que o empregado receberia sua remuneração normal nas próximas semanas, embora deixasse de trabalhar. Assim, quando a situação se normalizar, ele prestaria horas extras, sem receber novamente por elas.

Nesse sentido, para flexibilizar o estabelecimento do banco de horas em tempos de COVID-19, a medida provisória autoriza que:

               – compensação por até 18 meses, contados da data de encerramento do estado de calamidade pública (a CLT tradicionalmente limita o banco de horas a 1 ano – art. 59, §2º)

               – estabelecimento por meio de acordo coletivo ou individual formal (diferentemente do regime celetista, que exige negociação coletiva para bancos de horas com mais de 6 meses de validade)

VI – Suspensão de exigências administrativas em segurança e saúde no trabalho

A MP 927 suspendeu a obrigatoriedade de realização dos exames médicos ocupacionais, exceto dos exames demissionais.

Estes exames com obrigatoriedade suspensa deverão ser realizados, em regra, dentro de prazo de 60 dias após o encerramento do estado de calamidade pública. No entanto, se o médico coordenador de programa de controle médico e saúde ocupacional (PCMSO) considerar que a prorrogação representa risco para a saúde do empregado, o médico indicará ao empregador a necessidade de sua realização imediata.

Quanto ao exame demissional, embora persista a obrigatoriedade de sua realização, este poderá ser dispensado caso o exame médico ocupacional mais recente tenha sido realizado há menos de 180 dias.

Além disso, a MP permitiu a manutenção da atual composição da Cipa – comissões internas de prevenção de acidentes – e a suspensão das eleições em curso.

VII – Direcionamento do trabalhador para qualificação

A CLT já autorizava que, em determinados momentos, os empregados fossem encaminhados a programas de qualificação profissional, durante os quais eles deixariam de receber suas remunerações. É o chamado lay-off, previsto no art. 476-A da CLT.

Em seu texto original, a MP 927 tinha ido além, flexibilizando uma série de aspectos da participação dos empregados nos referidos cursos. Assim, previa que o contrato de trabalho poderia ser suspenso para participação do empregado em curso ou programa de qualificação profissional oferecido pelo empregador, diretamente ou por meio de entidades responsáveis pela qualificação, com duração equivalente à suspensão contratual.

Tal medida, no entanto, foi revogada pela Presidência da República, ao longo da tarde do dia 23/3, em razão das críticas recebidas do meio político e diversos juristas.

Isto porque a suspensão ocorreria sem qualquer remuneração ao empregado e sem o recebimento de benefícios do Governo, pelo prazo de até 4 meses. Tudo isto poderia ser pactuado sem a participação do sindicato.

VIII – Diferimento do recolhimento do FGTS

Sabemos que o FGTS deve ser recolhido pelos empregados até o dia 7 de cada mês, tomando por base o total da folha de pagamento e, em regra, a alíquota de 8%.

Para aliviar o fluxo de caixa das empresas, o Governo decidiu suspender a exigibilidade do recolhimento do FGTS referente às competências de março, abril e maio de 2020 (isto é, com vencimento em abril, maio e junho de 2020),

Tal benefício independe do número de empregados, regime de tributação, ramo de atividade econômica ou de prévia adesão.

Além disso, o recolhimento dos referidos valores poderá ser realizado de forma parcelada, sem a incidência de atualização monetária, de multa ou TR – taxa referencial.

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Antes de concluir, vale destacar ainda que, apesar de a MP ter entrado em vigor em 22/3/2020, ela possui efeitos retroativos, de modo a convalidar as medidas adotadas pelos empregadores nos 30 dias anteriores.

Por fim, vale ressaltar que, além das medidas previstas na MP 927, de caráter excepcional, existem outras alternativas juridicamente válidas no sentido de reduzir o peso da folha de pagamento em momentos como este, a exemplo da possibilidade de redução salarial por meio de negociação coletiva (CF, art. 7º, VI) e o lay-off tradicional (CLT, art. 476-A), medidas mencionadas inclusive na Nota Técnica Conjunta MPT 06/2020.

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Sintetizando os principais pontos comentados, chegamos à seguinte tabela:

MP 927
Teletrabalho: – determinação unilateral pelo empregador
– dispensa do aditivo contratual prévio
– prazo de transição de 48 hs
Férias individuais: – participação com antecedência de 48 horas
– remuneração paga junto com o salário
– pagamento do terço constitucional até 20/dez
Férias coletivas: – possibilidade de mais de 2 períodos e menos de 10 dias em cada um
– dispensa da comunicação aos órgãos da Secretaria especial do Trabalho e Previdência Social
Antecipação de feriados: – notifica com 48 hs de antecedência
– se for religioso, consentimento do empregado
Banco de horas: – 18 meses
– acordo individual formal
 Suspensão da obrigatoriedade de realização dos exames médicos ocupacionais, exceto demissionais
Qualificação profissional: – acordo individual
– prazo de 4 meses
– possibilidade de ajuda compensatória
– sem bolsa de qualificação
– curso à distância
Adiamento do FGTS: – competências de março, abril e maio de 2020
– parcelamento sem AM, juros e TR

Bem, amigos, espero que seja útil !

Havendo qualquer dúvida, estou à disposição por meio das nossas redes sociais.

Um forte abraço (virtual) e até a próxima! =)

Prof. Antonio Daud

@professordaud

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Veja os comentários
  • Boa me tire uma dúvida nessa situação aí que nós encontramos a empresa pode parcelar a recisão?
    Ari em 15/04/20 às 23:37
  • Excelente trabalho. Eu só colocaria também como destaque na questão do FGTS o art 25 que prorroga para 90 dias o prazo de validade dos Certificados de Regularidade já emitidos.
    Eugenio S Coelho em 24/03/20 às 14:26
  • Excelente artigo! Parabéns!
    Ana em 23/03/20 às 15:31
  • Atualmente no local onde eu trabalho tem alguns trabalhadores bem regime de lay-off eles recebem uma parte da empres qual a diferença com essa nova medida e desvantagem p o trabalhador?
    Altamiro em 23/03/20 às 13:05
  • Antonio, boa tarde. Excelente explicação. Infelizmente no nosso atual cenário, as pessoas levam qualquer medida apenas como jogo político, não param para ler e nem ouvir a opinião de alguém que realmente sabe. Existem soluções boas e ruins, e essa, na minha opinião é algo para não gerar o desemprego em massa após essa crise, pois como você mesmo disse, seria realmente injusto a empresa “pagar tudo sozinha”, acordos e facilitações devem ser feitos para não prejudicar nenhum dos lados. Vamos pensar um pouco mais e realmente ponderar a situação, estamos em um momento difícil.
    Júlio Frauzino em 23/03/20 às 12:46
  • Bom dia. Eu estava lendo está MP agora e sinceramente fiquei em dúvida se ela se aplica a todas as empresas, devido ao que consta no seu artigo 32: Art. 32. O disposto nesta Medida Provisória aplica-se: I - às relações de trabalho regidas: a) pela Lei nº 6.019, de 3 de janeiro de 1974, e b) pela Lei nº 5.889, de 8 de junho de 1973; e II - no que couber, às relações regidas pela Lei Complementar nº 150, de 1º de junho de 2015, tais como jornada, banco de horas e férias. Estas leis tratam-se de trabalho temporário, trabalho rural e trabalho de empregadas domésticas. A lógica é que está MP se aplique à todas as empresas, mas este artigo 32 gera uma insegurança jurídica, pois caso fosse apenas para incluir estas Leis aos demais contratos CLT, o presente artigo poderia trazer que "O disposto nesta Medida Provisória estende-se" ou "O disposto nesta Medida Provisória inclui" e não "aplica-se". Qual seu entendimento?
    Thiago Antunes em 23/03/20 às 11:17