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Execução Provisória da Pena: reflexões sobre a recente decisão do STF.

Boa tarde, pessoal!

É com muita honra que inicio no Estratégia Concursos (carreiras jurídicas) abordando a disciplina de Direito Constitucional.

Meu nome é Felipo Lívio Lemos Luz e atualmente ocupo o cargo de Auditor-Fiscal do Trabalho, tendo sido aprovado no concurso de 2007 para o Estado do Espírito Santo. Sou formado em Física e Direito e possuo mestrado em Física Estatística, tendo, também, concluído os créditos do Doutorado. Posteriormente, iniciei o Mestrado em Processo Civil na Universidade Federal Do Espírito Santo (UFES), interrompendo.o curso em 2014 para iniciar a preparação para concursos da Magistratura Federal. Recentemente, fui aprovado no XVI concurso público de Juiz Federal Substituto da 1ª Região (2015/2016), esperando a tão aguardada nomeação. Sou professor universitário e de cursinhos preparatórios, lecionando as disciplinas de Física, Direito Constitucional e Processo Coletivo.

Nesse post inaugural irei comentar recente decisão do Supremo Tribunal Federal com reflexos no processo penal. Conforme vocês certamente já acompanharam pelo noticiário e redes sociais, o Supremo Tribunal Federal proferiu um julgamento histórico na semana passada (05/10) a respeito da possibilidade de execução provisória da pena. Para entendermos melhor a situação, escrevi esse artigo com as principais discussões contidas na decisão. Espero que gostem.

Resumo contextualizado do caso

O Partido Ecológico Nacional e o Conselho Federal da OAB ajuizaram Ações Declaratórias (ADC´s 43 e 44), objetivando que o Tribunal confirmasse a constitucionalidade do art. 283 do CPP, com a redação dada pela lei 12.403/11:

Art. 283. Ninguém poderá ser preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente, em decorrência de sentença condenatória transitada em julgado ou, no curso da investigação ou do processo, em virtude de prisão temporária ou prisão preventiva.

Inicialmente, deve ser rememorado que, nos termos do art. 14 da Lei 9.868/99 (regula o processo e julgamento da Ação Declaratória de Constitucionalidade), a petição inicial da ADC deverá, necessariamente, indicar a existência de controvérsia judicial relevante sobre a aplicação da disposição objeto da ação declaratória.

Nesse contexto, os subscritores afirmaram o preenchimento do requisito ora aludido pela mudança de entendimento da Corte no HC 126.292 (17/02/2016), onde foi discutida a legitimidade de ato do TJ/SP que, ao negar provimento ao recurso da defesa, determinou o início da execução da pena.

Naquela quadra, por maioria (7 X 4), o plenário do STF mudou a jurisprudência da Corte até então majoritária, afirmando possível a execução da pena depois de decisão condenatória de segunda instância (órgão colegiado). O relator, Ministro Teori Zavascki, realçou, na oportunidade, que a Jurisprudência prevalecente da Corte sempre admitiu a execução provisória da pena, mesmo em decisões posteriores à promulgação da Constituição de 1988. Como exemplo, o relator citou decisão tomada no HC 91675 (Rel. Min. Carmen Lúcia, Primeira Turma, DJe de 7/12/2007):

“HABEAS CORPUS. CONSTITUCIONAL. PROCESSUAL PENAL. CONDENAÇÃO PELO CRIME DE ATENTADO VIOLENTO AO PUDOR. EXECUÇÃO PROVISÓRIA DA PENA: POSSIBILIDADE. PRECEDENTES. NÃO CONFIGURAÇÃO DE REFORMATIO IN PEJUS. HABEAS CORPUS DENEGADO. 1. A jurisprudência deste Supremo Tribunal Federal é firme no sentido de ser possível a execução provisória da pena privativa de liberdade, quando os recursos pendentes de julgamento não têm efeito suspensivo. (…) 3. Habeas corpus denegado.

Como reforço argumentativo dessa tese, podemos lembrar que o STJ, antes do advento da lei 12403/11, editou o enunciado 267 da Súmula de sua jurisprudência dominante, asseverando, in verbis, que “A interposição de recurso, sem efeito suspensivo, contra decisão condenatória não obsta a expedição de mandado de prisão.”

O próprio CPP, no seu artigo 637 afirma que:

Art. 637. O recurso extraordinário não tem efeito suspensivo, e uma vez arrazoados pelo recorrido os autos do traslado, os originais baixarão à primeira instância, para a execução da sentença.

Na ocasião, o Ministro Teori deixou claro, ainda, que a mudança da tradicional jurisprudência – que afirmava a legitimidade da execução da pena como efeito de decisão condenatória recorrível – veio somente, no julgamento, pelo Plenário, do HC 84.078/MG, realizado em 5/2/2009, oportunidade em que, por sete votos a quatro, definiu-se que o princípio da presunção de inocência (inciso LVII do art. 5º da CF) se revela incompatível com a execução da sentença antes do trânsito em julgado da condenação.

Portanto, apenas a partir de 2009, a jurisprudência do STF assentou a impossibilidade de execução das penas privativas de liberdade antes do trânsito em julgado de sentença penal condenatória. Na ocasião, o Min. Eros Grau discorreu que “a antecipação da execução penal, ademais de incompatível com o texto da Constituição, apenas poderia ser justificada em nome da conveniência dos magistrados – não do processo penal (…) A comodidade, a melhor operacionalidade de funcionamento do STF não pode ser lograda a esse preço”.

Presente a controvérsia, portanto, cabia ao Tribunal decidir, agora no plano abstrato, sobre a possibilidade ou não da execução provisória da pena em face da norma preconizada no artigo 283 do CPP, já que a decisão em ADC possui eficácia contra todos e efeito vinculante em relação aos órgãos do Poder Judiciário e à Administração Pública federal, estadual e municipal.

O controle concentrado da norma se revelou importante, pois mesmo após a decisão proferida no HC 126.292, juízes de tribunais inferiores e outros ministros da própria corte (e.g, Ministro Celso de Melo) continuaram decidindo de forma contrária ao precedente, afirmando que a decisão tomada não seria vinculante, gerando uma profunda assimetria no sistema, mormente no que tange à segurança jurídica.

Dada urgência da situação, os proponentes da ação solicitaram que o tribunal efetuasse pronúncia em sede de medida cautelar. Ressalte-se que o resultado do julgamento ora comentado diz respeito a esse instrumento processual, já que o relator (Min. Marco Aurélio), ao final, se opôs à convolação do julgamento da medida cautelar em julgamento de mérito da ADC, como já reiteradamente adotado pelo Tribunal. Portanto, cabe ainda a decisão de mérito das respectivas ações.

Da leitura dos votos da medida cautelar, podemos perceber que o pano de fundo das discussões é marcadamente filosófico, defendendo a corrente vencedora uma visão utilitarista/pragmatista na interpretação do princípio da não culpabilidade ou presunção de inocência, enquanto a vertente agora perdedora impõe uma leitura do princípio como um fim em si mesmo, ou, num jargão mais filosófico, como uma autofinalidade.

Richard Posner, um defensor do pragmatismo no direito, define esse movimento como uma “abordagem prática e instrumental, e não essencialista: interessa-se por aquilo que funciona e é útil, e não por aquilo que realmente é (…) ao enfatizar a prática, o olhar adiante e as consequências, o pragmatista é empírico”. Não temos como deixar de pensar nesse tipo de enfoque quando lemos, por exemplo, o voto do Min. Barroso, ao afirmar que:

“O sistema penal brasileiro não tem funcionado adequadamente. A possibilidade de os réus aguardarem o trânsito em julgado dos recursos dos recursos especial e extraordinário em liberdade para então iniciar a execução da pena enfraquece demasiadamente a tutela de bens jurídicos resguardados pelo direito penal e a própria confiança da sociedade na Justiça criminal. Ao se permitir que a punição seja retardada por anos e mesmo décadas, cria-se um sentimento social de ineficácia da lei penal e permite-se que a morosidade processual possa conduzir à prescrição dos delitos”.

Como reforço do exposto, o ministro cita alguns casos emblemáticos como o caso do jornalista Pimenta Neves, da missionária Dorothy Stang, Edmundo, entre outros.

Em sentido filosoficamente contrário, o Min. Celso de Mello indagou de modo enfático em seu voto:

“Quantas liberdades garantidas pela Carta Política precisarão ser comprometidas para legitimar o julgamento plenário do Supremo Tribunal Federal que, ao instituir artificial antecipação do trânsito em julgado, frustrou, por completo, a presunção constitucional de inocência? Quantos valores essenciais consagrados pelo estatuto constitucional que nos rege precisarão ser negados para que prevaleçam razões fundadas no clamor público e em inescondível pragmatismo de ordem penal? Até quando dados meramente estatísticos poderão autorizar essa inaceitável hermenêutica de submissão, de cuja utilização resulte, como efeito perverso, gravíssima e frontal transgressão ao direito fundamental de ser presumido inocente”?

Assim, o Tribunal, por maioria (6 X 5), entendeu que o artigo 283 do Código de Processo Penal (CPP) não impede o início da execução da pena após condenação em segunda instância e indeferiu liminares pleiteadas nas Ações Declaratórias de Constitucionalidade (ADCs) 43 e 44. Do ponto de vista técnico, parece que o Tribunal efetuou uma interpretação conforme no âmbito das ADC´s para declarar a constitucionalidade do artigo, desde que interpretado de modo a não impedir o cumprimento provisório da pena.

Ressalte-se que a decisão já é objeto de crítica, como podemos notar em comentário do professor Lênio Streck sobre o tema:

“A maioria de seis votos fez política jurídica. Não fez Direito. O STF agiu como poder constituinte. Foram pronunciamentos morais sobre como deve ser o direito penal. Mas isso não compete ao STF. Interessante foi a tese da interpretação conforme a Constituição do artigo 283. Só que foi proposta uma interpretação para colocar o artigo 283 contra e não conforme a Constituição. Uma jaboticaba. Criamos uma Auslegung gegen die Verfassung (interpretação contra a CF)? Agora o STF está numa sinuca: face aos efeitos cruzados de ADC e ADI (artigo 28 da Lei 9.828), o STF terá que dizer que o artigo 283 é inconstitucional. Mas nenhum dos Ministros disse que o artigo 283 era inconstitucional. Ademais, estão erradas as manchetes que dizem que a decisão vincula. Cautelar indeferida de ADC não vincula”.

Para uma discussão mais aprofundada ver: http://www.conjur.com.br/2016-out-07/streck-stf-presuncao-inocencia-interpretacao-conforme

Por fim, indagação interessante no campo dos concursos públicos é a referente à necessidade de duplo grau para o cumprimento provisório da pena. Poderia ser algo do tipo:

Para que seja iniciado o cumprimento da pena, é necessário que o réu tenha sido submetido ao duplo grau de jurisdição? Seria possível a execução provisória da pena em caráter originário, ou seja, diretamente pelo tribunal em situações de foro por prerrogativa de função?

A reposta à indagação seria: para início do cumprimento provisório da pena o que importa é a existência de acórdão condenando o réu, não sendo necessário o duplo grau de jurisdição. Como exemplo, na Ação Penal 675 (decisão em 06/04/2016) a Corte Especial do STJ determinou o início imediato da execução da pena de Desembargador do TJMT, condenado por corrupção passiva (venda de sentença). Outrossim, nas situações em que o réu não tenha prerrogativa de função, é possível mesmo que a decisão de 1º grau seja absolutória e a de 2º grau seja condenatória, importando essa última (acórdão) para efeito de execução provisória da pena. Dessa forma, para o cumprimento da execução provisória não se exige um duplo grau com uma dupla condenação (1ª e 2ª instâncias), mas, sim, acórdão condenatório e possíveis recursos sem efeito suspensivo (não aplicável aos embargos declaratórios).

É isso pessoal! Para quaisquer críticas ou dúvidas podem enviar email para [email protected] ou acessar a minha página do Facebook ou Instagram (Felipo Luz).

Forte abraço!

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Veja os comentários
  • Simplesmente fantástico o seu comentário! Muito esclarecedor e ditático, com conhecimento interdisciplinares, gosto do que leio! Que Deus lhe acrescente mais sabedoria! Espero que a essas alturas já tenhas sido nomeado.
    sanubya em 04/08/17 às 12:08
  • Belíssima explanação e questionamentos. Estou desenvolvendo um artigo sobre o tema e pretendo aprofundar nesses temas.
    Fabricio Andrade Albani em 05/01/17 às 19:09
  • Olá Vanessa! Tudo bem? No HC 84078/MG de 2009, que é o "leading case" da jurisprudência anterior do STF, o Min. Eros Grau deixou claro que "A prisão antes do trânsito em julgado da condenação somente pode ser decretada a título cautelar". Com a mudança de paradigma, entendo que essa questão estaria errada daqui por diante, ou seja, poderíamos dizer que a decisão de 2º grau, por si só, permitiria e execução da sentença, a despeito da existência dos requisitos de cautelaridade (art. 312 do CPP). Boa pergunta. Abraços e bons estudos!
    Felipo Luz em 11/10/16 às 12:38
  • Oi, professor. Fiz uma questão recentemente em que foi considerada correta a seguinte afirmativa: "Por força do princípio da presunção da inocência, a prisão do réu decretada por juiz anteriormente à condenação transitada em julgado terá sempre natureza cautelar". Essa questão ainda estaria correta à luz do entendimento do STF sobre a possibilidade de execução da pena após a decisão de segunda instância? Em outras palavras, uma vez iniciada a execução da pena após a decisão de segunda instância, eu posso ainda classificar essa prisão como cautelar? Obrigada!
    Vanessa em 11/10/16 às 12:00
  • Obrigado pela força, Rodrigo! Abraços.
    Felipo Luz em 10/10/16 às 18:48
  • Interessantíssimo Professor Felipo Luz, desejo-lhe sorte nesse novo desafio, certamente agregará muito ao Estratégia Concursos. Abraços.
    Rodrigo em 10/10/16 às 18:32