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O TESTAMENTO VITAL NO BRASIL

O emprego do testamento vital no Brasil foi autorizado pelo Conselho Federal de Medicina há dez anos, porém ainda continua a ser alvo de debates fervorosos e de muitas dúvidas e receios

Olá, meus amigos, tudo bem? Hoje vamos abordar o testamento vital, um instrumento médico-jurídico ainda pouco conhecido e adotado pelos brasileiros, mas muito comum no dia-a-dia de outras nações.

O TESTAMENTO VITAL NO BRASIL

A RESOLUÇÃO Nº 1.955/2012 DO CFM

Em 2012, o Conselho Federal de Medicina (CFM) publicou a Resolução nº 1.995, em que “dispõe sobre as diretivas antecipadas de vontade dos pacientes”. Através do documento, ainda que de maneira sucinta, a autarquia buscou disciplinar a matéria em termos ético-profissionais, isto é, como os profissionais médicos devem lidar com situações potencialmente graves e fatais, mas nas quais o doente esteja “incapacitado de expressar, livre e autonomamente, sua vontade” (art. 1º).

Dentre as justificativas e os motivos expostos na Resolução, dois pontos, além da própria necessidade de regulamentação, merecem ser destacados: (i) a relevância que a autonomia do paciente tem adquirido nas últimas décadas, com substituição progressiva de um sistema – relação médico-paciente – alicerçado essencialmente no paternalismo; e (ii) a possibilidade, decorrente dos avanços tecnológicos, do prolongamento da vida de maneira não benéfica.

Assim, podemos notar que a Resolução nº 1.995 adota uma postura de cunho mais liberal na condução dos desejos dos pacientes, com a busca pelo respeito e obediência às suas determinações enquanto os principais interessados em sua própria saúde e na continuidade ou não de suas vidas. Esta concepção da normativa brasileira demonstra influência e semelhanças com legislações estrangeiras que regulamentam a disciplina, em especial da estadunidense; neste último, são conhecidas como living will, termo semelhante a “testamento vital” e sinonímia de “diretivas antecipadas de vontade” – advance directives.

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A LEGALIDADE DA RESOLUÇÃO

A resolução foi judicialmente questionada pelo Ministério Público Federal através de Ação Civil Pública (Processo nº 1039-86.2013.4.01.3500) em que se argumentou a incompetência do CFM em regulamentar a matéria e que somente ao Congresso Nacional poderia dispor sobre a questão das diretivas antecipadas.

O CFM, por sua vez, argumentou que a Lei nº 3.268, de 30 de setembro de 1957, outorgou aos Conselhos de Medicina competência para tratar do exercício técnico e moral da medicina. Além disso, aduziu que a resolução tinha como objetivo o respeito à autonomia do paciente e se fundava, essencialmente, na dignidade humana.

Ao cabo, o órgão ministerial saiu vencido da lide, nos seguintes termos:

Está certo o MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL ao apontar a inexistência de lei ou ato normativo de mesma hierarquia sobre a questão tratada neste processo.

É de todo desejável que tal questão venha a ser tratada pelo legislador, inclusive de forma a fixar requisitos atinentes à capacidade para fazer a declaração, sua forma, modo de revogação e eficácia.

Todavia, dado o vazio legislativo, as diretivas antecipadas de vontade do paciente não encontram vedação no ordenamento jurídico. E o Conselho Federal de Medicina não extrapolou os poderes normativos outorgados pela Lei n° 3.268/57.

A Resolução CFM n° 1995/2012 apenas regulamenta a conduta médica perante a situação fática de o paciente externar a sua vontade quanto aos cuidados e tratamentos médicos que deseja receber ou não, na hipótese de se encontrar sem possibilidade de exprimir sua vontade.

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FALHAS NA FORMAÇÃO ACADÊMICA

Nos últimos anos, promissoras reformas dos currículos dos cursos de graduação foram levadas a cabo nos últimos anos. Envolveram o necessário debate acerca da ética na assistência à saúde e, principalmente, acerca da importância da integração e humanização nos cuidados ao indivíduo dentro de um contexto mais vasto e para além do “remediar”. No entanto, o efetivo exercício destas visões ainda se mostra incipiente na maioria dos casos.

Devemos destacar também que os médicos e os demais profissionais da saúde são membros da sociedade. Ou seja, carregam consigo concepções culturais, religiosas e morais sobre o evento do morrer e que podem lhes influenciar na tomada das decisões necessárias no cotidiano assistencial. Não são pessoas alheias aos acontecimentos que os cercam e não são imunes aos julgamentos por seus pares e seus próximos.

Conforme pontua DADALTO e GONSALVES, temos que:

Os profissionais da área da saúde andam frequentemente sob uma linha tênue diante dos desejos do paciente e das intervenções médicas necessárias aos que estão morrendo. Isto deve-se ao fato de que, durante toda a sua formação, aprendem que devem fazer de tudo para salvar a vida de seus pacientes. Em alguns casos, a doença torna-se um desafio e, se um paciente morre, o médico sente-se fracassado. Transpor essa linha nem sempre é fácil, ‘os cuidados médicos no final da vida são muitas vezes inconsistentes com as escolhas do paciente’ e acarretam implicações legais, éticas e econômicas.

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O DIREITO À LIBERDADE

O direito à vida e o direito à liberdade são dois direitos fundamentais e se encontram presentes no texto constitucional atual no caput do art. 5º, o qual inicia o Capítulo I (Dos direitos e deveres individuais e coletivos) do Título II (Dos direitos e garantias fundamentais). São invioláveis, assim como os direitos à igualdade, à segurança e à propriedade, e não são passíveis de serem abolidos, por constituírem cláusula pétrea – art. 60, parágrafo 4º, IV, CF.

São ditos fundamentais pois representam o núcleo básico a todos os seres humanos perante a ordem constitucional brasileira vigente, possuindo um caráter subjetivo – enquanto garantias e proteções do indivíduo – e também dimensão objetiva – dado seu caráter diretivo e vinculante em relação, em especial, aos entes estatais.

O direito à liberdade, previsto no caput do art. 5º da Constituição Federal, é polissêmico. Quando estudamos a liberdade, percebemos que delimitar o seu ponto de início é, por certo, importante, mas a questão fulcral se mostra descobrir “qual forma de liberdade”, ou seja, liberdade para quais atitudes ou para quais práticas.

A chamada liberdade geral de ação, conforme explica José Afonso da Silva, constitui a “liberdade-matriz”, posto ser base para todas as formas de agir em uma sociedade. Trata-se de um princípio de longa extensão e que permite a todos fazer ou deixar de fazer o que entenderem ser melhor, desde que não haja determinação legal em sentido oposto. O direito à liberdade seria, portanto, estritamente regulado pela legalidade, no sentido de que somente a lei – em sentido amplo – pode impedir alguém de decidir e agir de maneira autônoma sobre seus interesses, sendo livre, portanto, qualquer prática não proibida.

Ora, se há previsão legal acerca da possibilidade de elaboração dos testamentos vitais e se sua legalidade já foi juridicamente confirmada, o exercício desta forma de liberdade não contraria o ordenamento jurídico brasileiro vigente.

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CONCLUSÕES

Como vimos, o testamento vital ainda é um instrumento recente para a sociedade brasileira. Sua regulamentação se deu há dez anos e seu uso ainda não é corriqueiro como em outras nações.

No entanto, encontra-se fundamentado nas liberdades individuais, elemento constitucionalmente protegido, e que busca proteger a autonomia pessoal.

Entendemos que a tendência é para que seu emprego cresça progressivamente ao longo dos próximos anos, daí a relevância de se conhecer melhor suas bases e seus empregos.

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Referências

BRASIL. Tribunal Regional da 1ª Região. Sentença. Disponível em: https://processual.trf1.jus.br/consultaProcessual/processo.php?proc=10398620134013500&secao=JFGO. Acesso em: 10 mar. 2022.

“Sobre as Diretivas, também conhecidas como Testamento Vital, o Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo (Cremesp) elaborou, à época, um parecer sobre a discussão, por meio da Consulta nº 18.688/12, que reconhece ao paciente o direito a uma morte digna, escolhendo como e onde morrer, recusar ou solicitar certos tratamentos, medicamentos e intervenções em caso de inconsciência do paciente.” CONSELHO REGIONAL DE MEDICINA DO ESTADO DE SÃO PAULO (CREMESP). Testamento vital. 2017. Disponível em: http://www.cremesp.org.br/?siteAcao=Noticias&id=4547.

DADALTO, Luciana; GONSALVES, Nathalia Recchiutti. Wrongful prolongation of life: um novo dano para um novo paradigma de proteção da autonomia. Revista Brasileira d3e Direito Civil, Belo Horizonte, v. 25, p. 271-282, jul./set. 2020.

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