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A ADI 5779 E AS AGÊNCIAS REGULADORAS

Para o STF, conforme se tem no julgamento do mérito da ADI 5779, as decisões técnicas proferidas por agências reguladoras podem ter, em alguns casos, maior relevância e eficácia do que determinações decorrentes de leis elaboradas pelo Poder Legislativo

Olá, meus amigos, tudo bem? Hoje vamos abordar o julgamento da ADI 5779, a história e a função das agências reguladoras, em especial da ANVISA, e a situação destes órgãos na estrutura republicana.   

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Divisão de Poderes

Podemos dizer que a tripartição de Poderes constituí um dos pilares do modelo republicano moderno, tanto para as democracias parlamentaristas quanto as presidencialistas. O exercício das funções públicas de maneira harmônica pelos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário e, em especial, o sistema de pesos e contrapesoschecks and balances – têm servido como a base governamental em grande parte das nações ao redor do mundo.  

O art. 2º da Constituição Federal de 1988 assim dispõe: “Art. 2º São Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário.”

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Políticas públicas

No entanto, em seu livro Ruling the void, PETER MAIR há tempos já apontava a perda de prestígio da democracia representativa e partidária e a sua substituição por órgãos técnicos e não eleitos diretamente pela população, tais como os Bancos Centrais e as agências governamentais, ligadas diretamente ao Poder Executivo, e também pelo próprio Poder Judiciário, em decorrência da intensa judicialização dos

Public policy is no longer so often decided by the party, or even under its direct control. Instead, with the rise of the regulatory state, decisions are increasingly passed to nonpartisan bodies that operate at arms length from party leaders – the ‘non-majoritarian’ or ‘guardian’ institutions. Faced with increasing environmental constraints, as well as with the growing complexity of legislation and policy-making in a transnational context, there is inevitably a greater resort to delegation and depoliticization.

Neste sentido, o que se tem em quase todas as democracias ocidentais nas últimas décadas foi a gradativa substituição do centro de decisões, com a perda de poder pelos parlamentares e o incremento do prestígio de agentes técnicos.   

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História e tipos de agências reguladoras

As agências governamentais brasileiras não são uma criação política recente. Pelo contrário, órgãos como o Comissariado de Alimentação Pública e o Instituto de Defesa Permanente do Café foram criados ainda nas primeiras décadas do século passado.  

A origem destes entes é lembrada pela forte influência do modelo estadunidense, em que as agencies desempenham tanto função executiva quanto reguladora e cujo papel é essencial ao funcionamento da Administração Pública daquela nação.

Apesar de centenárias, foram nas últimas décadas que as agências brasileiras tomaram maior importância, com a criação, dentre outras, da Agência Nacional de Energia Elétrica (ANEEL), da Agência Nacional de Telecomunicações (ANATEL), da Agência Nacional de Petróleo (ANP) e da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA).

Por fim, sobre a divisão entre agências executivas e agências reguladoras, temos em Di Pietro:

Agência executiva é a qualificação dada à autarquia ou fundação que celebre contrato de gestão com o órgão da Administração Direta a que se acha vinculada, para a melhoria da eficiência e redução de custos.

Agência reguladora, em sentido amplo, seria, no direito brasileiro, qualquer órgão da Administração Direta ou entidade da Administração Indireta com função de regular a matéria específica que lhe está afeta.

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A ANVISA

Não existe uma lei geral que discipline de maneira uniforme a forma, o funcionamento e as atribuições das agências. Habitualmente tais características estão dispostas na própria lei que dá vida ao órgão. Neste sentido, temos que a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA), criada por meio da Lei nº 9.782, de 26 de janeiro de 1999, é uma autarquia sob regime especial – art. 3º – e cuja função é, sobretudo, a proteção da saúde da população – art. 6º –, sendo, portanto, do tipo reguladora.

Art. 3º Fica criada a Agência Nacional de Vigilância Sanitária – ANVISA, autarquia sob regime especial, vinculada ao Ministério da Saúde, com sede e foro no Distrito Federal, prazo de duração indeterminado e atuação em todo território nacional.  

Parágrafo único.  A natureza de autarquia especial conferida à Agência é caracterizada pela independência administrativa, estabilidade de seus dirigentes e autonomia financeira.

Art. 6º A Agência terá por finalidade institucional promover a proteção da saúde da população, por intermédio do controle sanitário da produção e da comercialização de produtos e serviços submetidos à vigilância sanitária, inclusive dos ambientes, dos processos, dos insumos e das tecnologias a eles relacionados, bem como o controle de portos, aeroportos e de fronteiras.

Convém destacar também que o art. 4º da mesma legislação prevê que a ANVISA deverá atuar com uma entidade administrativa independente, de tal modo que consiga exercer adequadamente as suas atribuições.

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A RDC n° 50 da ANVISA

No ano de 2014 a Diretoria da ANVISA, por meio da Resolução Colegiada nº 50 (RDC nº 50/2014), determinou que a venda de femproporex, anfepramona, mazindol e sibutramina estaria sujeita a um procedimento específico.

Estas substâncias, conhecidas como anorexígenos, têm como principal indicação médica o tratamento da obesidade. No entanto, são medicamentos com possíveis efeitos colaterais graves, havendo inclusive relatos de óbitos em decorrência do seu uso.

Especialmente a sibutramina, por se tratar de uma droga de comercialização mais recente, também não dispunha de acompanhamento técnico de longo prazo em escala populacional. Daí que a comunidade médica afirma que a prescrição de qualquer medicação dessa classe deve ser feita de maneira cautelosa e criteriosa, avaliando os riscos e os benefícios para cada caso.

A RDC nº 50/2014, posteriormente alterada pela RDC nº 133/2016, teve como objetivos, além de limitar a dosagem máxima diária de uso destas substâncias, possibilitar maior controle sanitário tanto das prescrições quanto das manipulações destes anorexígenos. E, ainda, a resolução buscou melhor monitoramento dos eventos adversos relacionados ao consumo destas drogas, tornando a resposta dos entes estatais mais rápida e adequada.

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A Lei nº 13.454/2017

Em 23 de junho de 2017, no entanto, foi promulgada a Lei nº 13.454/2017, a qual autorizou a produção, a comercialização e o consumo das medicações discriminadas nas RDC anteriormente citadas. E, ao contrário das normativas da ANVISA, o diploma legislativo dispôs como único requisito formal a necessidade de prescrição médica com uso de talonário modelo B2. A referida lei possui apenas dois artigos, sendo omissa em relação a qualquer outro elemento formal que não seja a determinação da adoção do formulário específico.

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Modelo B2

Durante o julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 4.874 – DF (ADI 4874), em 2018, o Supremo Tribunal Federal (STF) entendeu que os atos normativos das agências reguladoras, ainda que não constituam lei em sentido estrito, estão sujeitos ao controle de constitucionalidade pela via concentrada quando seu conteúdo for dotado de “abstração, generalidade, autonomia e imperatividade”.

Apesar disso, conforme discussão da Corte, estas resoluções estariam subordinadas às leis e deveriam se compatibilizar com o ordenamento jurídico brasileiro. Desta forma, em uma análise inicial seria de se esperar que as determinações das RDC nº 50/2014 e 133/2016 teriam sido superadas com a edição da Lei nº 13.454/2017.

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A Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 5779

No julgamento da ADI 5779, o STF mostrou entendimento diverso e o voto-vencedor, elaborado pelo Ministro Edson Fachin, concluiu pela declaração de inconstitucionalidade na integralidade da Lei nº 13.454/2017. O julgamento da ADI 5779 ainda não possui Acórdão publicado, no entanto Fachin coloca a questão nos seguintes termos em seu voto:

A Resolução apresenta, assim, uma série de requisitos para que se possa fazer uso da substância. Ocorre, porém, que o teor da lei impugnada conduz precisamente ao resultado oposto, isto é, à indevida dispensa do registro sanitário. Inviável, assim, interpretação conforme dada à ausência de latitude hermenêutica para esse desiderato nessa lei de efeitos concretos.

Para o ministro, a regulamentação prevista nas resoluções da ANVISA tem como principal escopo a proteção da saúde dos membros da sociedade brasileira. A inobservância destes procedimentos, conforme se depreende do diploma legislativo, configura uma forma de retrocesso, algo não compatível com o texto constitucional.

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Conclusões

Neste artigo sobre a ADI 5779 e o papel das agências reguladoras vimos:

As decisões tomadas por entidades técnicas, tais como as agências reguladoras, têm ganhado força nas sociedades atuais.

Essa mudança não necessariamente contraria a divisão de Poderes e o modelo democrático moderno.

Os interesses sociais, tais como a segurança no uso de um tratamento médico, podem preponderar sobre escolhas legislativas.   

O voto divergente dado pelo Ministro Edson Fachin acabou sendo vencedor e a Lei nº 13.454/2017 foi declarada inconstitucional.

Permanecem válidas todas as previsões dispostas pela ANVISA em suas regulamentações.

O controle do uso de anorexígenos continua a exigir todos os procedimentos dispostos na RDC nº 133/2016. 

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Referências

BRASIL. Agência Nacional de Vigilância Sanitária. Resolução da Diretoria Colegiada nº 50 de 2014. Disponível em: <https://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/anvisa/2014/rdc0050_25_09_2014.html>, acesso em 8 Dez. 2021.

BRASIL. Agência Nacional de Vigilância Sanitária. Resolução da Diretoria Colegiada nº 133 de 2016. Disponível em: <https://www.in.gov.br/materia/-/asset_publisher/Kujrw0TZC2Mb/content/id/24781111/do1-2016-12-16-resolucao-rdc-n-133-de-15-de-dezembro-de-2016-24781056>, acesso em 8 Dez. 2021.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) nº 4.874 – DF. Relatora: Ministra Rosa Weber. Julgamento em 01.02.2018. Disponível em: <https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=749049101>, acesso em 8 Dez. 2021. Sobre a necessidade de compatibilização dos atos normativos das agências reguladoras e as leis em sentido estrito, temos: “O poder normativo atribuído às agências reguladoras pelas respectivas leis instituidoras consiste em instrumento para que dele lance mão o agente regulador de um determinado setor econômico ou social para a implementação das diretrizes, finalidades, objetivos e princípios expressos na Constituição e na legislação setorial. No domínio da regulação setorial, a edição de ato normativo geral e abstrato (poder normativo) destina-se à especificação de direitos e obrigações dos particulares, sem que possa, a agência reguladora, criá-los ou extingui-los. O poder normativo atribuído às agências reguladoras vocaciona-se, como bem pontua Sérgio Guerra, a ‘traduzir, por critérios técnicos, os comandos previstos na Carta Magna e na legislação infraconstitucional acerca do subsistema regulado’. Com efeito, a norma regulatória deve compatibilizar-se com a ordem legal, integrar a espécie normativa primária, adaptando e especificando o seu conteúdo, e não substituí-la ao inovar na criação de direitos e obrigações. Seu domínio próprio é o do preenchimento, à luz de critérios técnicos, dos espaços normativos deixados em aberto pela legislação, não o da criação de novos espaços. Hierarquicamente subordinado à lei, o poder normativo atribuído às agências reguladoras não lhes faculta inovar ab ovo na ordem jurídica (…)”.

DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 27ª edição. São Paulo: Editora Atlas, 2014, pp. 536-546. Sobre as agências estadunidenses e suas funções, temos: “As agências norte-americanas exercem funções quase-legislativas, porque editam normas; e funções quase-judiciais, porque resolvem determinados conflitos de interesses, determinando o direito aplicável para solucioná-los. A função quase-judicial é aceita sem maiores contestações, uma vez que submetida ao controle pelos Tribunais, mas passou por toda uma evolução, no sentido da ampliação desse controle. A função quase-legislativa tem sido objeto de grandes contestações, tendo em vista principalmente a ideia de indelegabilidade de poder, decorrente do princípio da separação de poderes, bastante rígido no direito norte-americano; esse princípio impede que o legislativo delegue a sua função de legislar a órgãos de outros Poderes.”

GUERRA, Miguel Rodriguez; YADAV, Mayank; BHANDARI, Manoj. Sibutramine as a Cause of Sudden Cardiac Death. Case Reports in Cardiology. 2021:1-5. Disponível em <https://www.researchgate.net/publication/349149380_Sibutramine_as_a_Cause_of_Sudden_Cardiac_Death>, acesso em: 8 Dez. 2021. 

JAMES, W. Philip et al. Effect of Sibutramine on Cardiovascular Outcomes in Overweight and Obese Subjects. New England Journal of Medicine. 2010; 363:905-917. Disponível em: <https://www.nejm.org/doi/full/10.1056/nejmoa1003114>, acesso em: 8 Dez. 2021.

MAIR, Peter. Ruling the void – The hollowing-out of the western democracy. Londres: Editora Verso, 2013, pp. 74-75. Temos, para o autor, que: “[p]ublic policy is no longer so often decided by the party, or even under its direct control. Instead, with the rise of the regulatory state, decisions are increasingly (2000: 52). passed to nonpartisan bodies that operate at arms length from party leaders – the ‘non-majoritarian’ or ‘guardian’ institutions (Majone, 1994). Faced with increasing environmental constraints, as well as with the growing complexity of legislation and policy-making in a transnational context, there is inevitably a greater resort to delegation`and depoliticization (Thatcher and Stone Sweet, 2003). Moreover, the officials who work within these delegated bodies are less often recruited directly through the party organization, and are increasingly held accountable by means of judicial and regulatory controls. And since this broad network of agencies forms an ever larger part of a dispersed and pluriform executive, operating both nationally and supranationally, the very notion of accountability being exercised through parties, or of the executive being held answerable to voters (as distinct from citizens or stakeholders) becomes problematic.”

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